|
Texto Anterior | Índice
LIVRO CRÍTICA
A mariposa e a estrela
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
É raro que escritores tenham total
domínio sobre o
que escrevem, que
detenham todas as
razões e chaves por
trás de seus romances ou poemas.
É menos raro, ainda, que tentem
explicá-los. "Estudar o mecanismo de uma obra de arte, ver de
perto suas engrenagens, seus menores detalhes, pode proporcionar certo prazer especial, mas um
prazer de que não podemos gozar
sem renunciar ao gozo dos efeitos
pretendidos pelo artista. Na realidade, considerar as obras de arte
de um ponto de vista analítico é
submetê-las, de algum modo,
àqueles espelhos do templo de Esmirna, que só refletiam as mais
belas imagens, deformando-as."
A julgar por esse excerto da nova edição revista de "Poemas e
Ensaios", de Edgar Allan Poe
(1809-49), o leitor poderia ficar
com a imagem enganosa de estar
diante de um escritor avesso às
análises literárias, alguém que não
poderia ter escrito textos como
"Análise Racional do Verso" ou
"A Filosofia da Composição", ensaios incluídos nesse volume, ao
lado de poemas célebres do autor.
Mas não é assim. Ao mesmo tempo em que aponta os limites da
análise literária, Poe combate, em
especial em "A Filosofia da Composição", o mito romântico de
que o poeta escreve por um "sutil
frenesi". O autor se presta a dissecar o seu poema mais conhecido,
"O Corvo", como um anatomista
debruçado sobre um cadáver: "É
meu desígnio tornar manifesto
que nenhum ponto de sua composição se refere ao acaso, ou à intuição, que o trabalho caminhou,
passo a passo, até completar-se,
com a precisão e a sequência rígida de um problema matemático".
A análise progride sem deixar
detalhes de fora ou sem explicação. Tudo faz sentido, tudo é obra
da razão. Como se não houvesse
espaço para intuição ou romantismo. Enfim, aparentemente nada do que Baudelaire saudou ao
traduzi-lo e revelá-lo na França:
"Como poeta, Edgar Poe é um homem à parte. Representa quase
sozinho o movimento romântico
do outro lado do oceano".
Em sua auto-análise, Poe vai reduzindo seu poema a uma série
de opções de ordem prática que
eliminam toda a mística romântica. E é só quando explica que de
início chegou a pensar em usar
um papagaio mas que logo depois
a imagem do corvo se impôs, por
estar "mais em relação com o tom
pretendido", que o leitor começa
a suspeitar que talvez haja um
tanto de loucura em tanta razão.
Poe sabe que a elevação da poesia não tem a ver com a paixão (o
excitamento do coração) ou com
a verdade (a satisfação da razão):
"Deve ser cego quem não percebe
a diferença radical e abismal que
existe entre as maneiras verídica e
poética de revelação". No entanto, insiste em combinar as duas,
impondo sua razão peculiar ao
universo da sua imaginação: "Assim é que redigimos gravemente
sobre o papel aquilo que, por coisa alguma deste mundo, poderíamos afirmar, pessoalmente, a um
amigo, sem corar ou romper em
gargalhadas".
Em "O Princípio Poético", ele
define a poesia como o que nos
faz vislumbrar não só centelhas
da eternidade mas a impossibilidade de atingi-la, e que a beleza
poética vem justamente desse
movimento impossível: "o anseio
da mariposa pela estrela". Paradoxo que Baudelaire soube muito
bem reconhecer e que dá à combinação conflitante entre razão e
imaginação nessa literatura rica
em contradições uma complexidade trágica tão extraordinária
quanto suas histórias: "Poe parece querer arrancar a palavra aos
profetas e atribuir-se o monopólio da explicação racional".
Avaliação:
Livro: Poemas e Ensaios
Autor: Edgar Allan Poe
Tradutor: Oscar Mendes e Milton
Amado
Editora: Globo
Quanto: R$ 22 (294 págs.)
Texto Anterior: Contardo Calligaris: Virilidade em crise Índice
|