São Paulo, Quinta-feira, 28 de Outubro de 1999
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LIVRO CRÍTICA
A mariposa e a estrela

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


É raro que escritores tenham total domínio sobre o que escrevem, que detenham todas as razões e chaves por trás de seus romances ou poemas. É menos raro, ainda, que tentem explicá-los. "Estudar o mecanismo de uma obra de arte, ver de perto suas engrenagens, seus menores detalhes, pode proporcionar certo prazer especial, mas um prazer de que não podemos gozar sem renunciar ao gozo dos efeitos pretendidos pelo artista. Na realidade, considerar as obras de arte de um ponto de vista analítico é submetê-las, de algum modo, àqueles espelhos do templo de Esmirna, que só refletiam as mais belas imagens, deformando-as."
A julgar por esse excerto da nova edição revista de "Poemas e Ensaios", de Edgar Allan Poe (1809-49), o leitor poderia ficar com a imagem enganosa de estar diante de um escritor avesso às análises literárias, alguém que não poderia ter escrito textos como "Análise Racional do Verso" ou "A Filosofia da Composição", ensaios incluídos nesse volume, ao lado de poemas célebres do autor. Mas não é assim. Ao mesmo tempo em que aponta os limites da análise literária, Poe combate, em especial em "A Filosofia da Composição", o mito romântico de que o poeta escreve por um "sutil frenesi". O autor se presta a dissecar o seu poema mais conhecido, "O Corvo", como um anatomista debruçado sobre um cadáver: "É meu desígnio tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição se refere ao acaso, ou à intuição, que o trabalho caminhou, passo a passo, até completar-se, com a precisão e a sequência rígida de um problema matemático".
A análise progride sem deixar detalhes de fora ou sem explicação. Tudo faz sentido, tudo é obra da razão. Como se não houvesse espaço para intuição ou romantismo. Enfim, aparentemente nada do que Baudelaire saudou ao traduzi-lo e revelá-lo na França: "Como poeta, Edgar Poe é um homem à parte. Representa quase sozinho o movimento romântico do outro lado do oceano".
Em sua auto-análise, Poe vai reduzindo seu poema a uma série de opções de ordem prática que eliminam toda a mística romântica. E é só quando explica que de início chegou a pensar em usar um papagaio mas que logo depois a imagem do corvo se impôs, por estar "mais em relação com o tom pretendido", que o leitor começa a suspeitar que talvez haja um tanto de loucura em tanta razão.
Poe sabe que a elevação da poesia não tem a ver com a paixão (o excitamento do coração) ou com a verdade (a satisfação da razão): "Deve ser cego quem não percebe a diferença radical e abismal que existe entre as maneiras verídica e poética de revelação". No entanto, insiste em combinar as duas, impondo sua razão peculiar ao universo da sua imaginação: "Assim é que redigimos gravemente sobre o papel aquilo que, por coisa alguma deste mundo, poderíamos afirmar, pessoalmente, a um amigo, sem corar ou romper em gargalhadas".
Em "O Princípio Poético", ele define a poesia como o que nos faz vislumbrar não só centelhas da eternidade mas a impossibilidade de atingi-la, e que a beleza poética vem justamente desse movimento impossível: "o anseio da mariposa pela estrela". Paradoxo que Baudelaire soube muito bem reconhecer e que dá à combinação conflitante entre razão e imaginação nessa literatura rica em contradições uma complexidade trágica tão extraordinária quanto suas histórias: "Poe parece querer arrancar a palavra aos profetas e atribuir-se o monopólio da explicação racional".


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Livro: Poemas e Ensaios
Autor: Edgar Allan Poe
Tradutor: Oscar Mendes e Milton Amado
Editora: Globo Quanto: R$ 22 (294 págs.)


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