|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Achados e perdidos
O site da Polícia Civil de São
Paulo (www.policia-civ.sp.gov.br) dá acesso a várias "consultas". Além de editais, licitações
e concursos, há a lista dos "Procurados da Justiça". Nela, aparecem
apenas os sujeitos perigosos. Mesmo assim, vale a pena notar que
duas outras listas são mais extensas: "Procura-se a família" e "Pessoas desaparecidas".
"Procura-se a família" apresenta os retratos de dezenas de adultos, homens e mulheres, quase todos internados em instituições
psiquiátricas, de quem se ignora a
família e o domicílio de origem.
Com eles, há três crianças, que foram "encontradas". Uma delas é
um menino, que olha para a gente com uma expressão atenta,
mas que "não fala, não ouve, responde por gestos". Parece que estamos errando entre as estantes
de um depósito de achados e perdidos, reservado aos que se tornam fardos insustentáveis para
seus próximos.
Na verdade, "Procura-se a família" é a lista dos achados; os
perdidos estão em "Pessoas desaparecidas". No site da Polícia Civil, são, mais ou menos, 300
crianças e adolescentes, 240 mulheres e mais de 700 homens adultos. Todos sumiram deixando
saudades; há uma família que
não entende e se desespera.
Cada grande cidade brasileira
propõe uma lista análoga. O fenômeno não é nacional: uma procura mundial na internet ("missing
persons") traz 3 milhões de páginas. Mesmo descontando as vítimas de perseguições e migrações
forçadas, o número é grande.
É possível que alguns desses desaparecidos sejam vítimas de acidentes ou crimes que os deixaram
incapacitados de declarar sua
identidade. Mas, em regra, um
acidentado carrega algum documento que permite sua identificação.
Para que alguém consiga sumir,
é preciso que haja uma intenção,
do próprio sujeito ou de outrem.
Se sumissem sobretudo crianças
e jovens mulheres, o fenômeno
pareceria mais simples. Afinal,
acontece de adolescentes e crianças fugirem de casa. Às vezes, tentam evitar uma violência que os
próprios familiares podem desconhecer. Outras vezes, eles tomam
ao pé da letra e antes da hora o
imperativo social de tornar-se autônomos e "grandes". Além disso,
existe um comércio de crianças
seqüestradas e vendidas para
adoções ilegais. Meninas e jovens
mulheres também poderiam ser
vítimas de redes organizadas de
prostituição.
Mas a grande maioria dos que
somem sem deixar rastos são homens adultos. Melhor aceitar o
óbvio: a cada ano, centenas de
milhares de sujeitos pelo mundo
afora escolhem sumir, abandonam lares, famílias, amigos, mudam de cidade e de nome. Tentam recomeçar a vida como se
não tivessem um passado.
Ao longo de minha prática,
nunca encontrei uma "pessoa desaparecida".
Mas, anos atrás, no pavilhão Pinel do hospital Sainte-Anne de
Paris, conheci um sujeito que sofria de uma amnésia espetacular:
suas funções intelectuais eram
perfeitamente preservadas, no entanto ele apresentava um total esquecimento de sua identidade e
história. Era benquisto na enfermaria, pois tinha competências
preciosas: consertava tudo, relógios, rádios, televisores. Eu não
conseguia me livrar da suspeita
de que ele estivesse fingindo; estranhava que ele tivesse sido encontrado sem nenhum documento.
Mais tarde, entendi um pouco
melhor o sentido dessa ausência
de documentos, quando me ocupei de um jovem adulto que sobreviveu a uma elaborada tentativa de suicídio. Um dia, ele recortou cuidadosamente as etiquetas
de suas roupas, jogou sua carteira
pela janela do trem e, chegado
numa cidade distante, foi para
um quarto de hotel, onde tomou
barbitúricos e cortou os pulsos,
depois de pendurar na maçaneta
da porta o sinal "por favor, não
perturbe". Foi descoberto por
uma camareira, que desrespeitou
o pedido.
Como ele me disse em nosso primeiro encontro, queria sumir de
maneira que nenhum resto de
sua vida prévia o alcançasse. Comentou, com um certo humor negro, que achava intolerável a incumbência de comparecer a seu
próprio funeral.
Ora, cuidado: ele amava sua família, sua namorada e seus amigos. Suas dívidas, reais ou simbólicas, não eram extraordinárias;
suas ambições não eram desmedidas nem especialmente frustradas; tampouco era angustiado pela sensação de que os outros esperassem dele muito mais do que ele
podia dar.
O problema era outro: um dia,
pareceu-lhe que todos os afazeres
que, em princípio, deviam ser frutos de sua liberdade (os gestos do
amor, os empreendimentos profissionais, os interesses culturais)
tinham-se transformado em encargos.
"Você gosta de música clássica?", perguntou-me. "De repente,
você descobre que o prazer de escutar um concerto foi substituído
pela obrigação de preencher a cadeira que você comprou para a
temporada inteira. Imagine que
isso aconteça com todos os seus
desejos. Fazer o quê?"
Ele decidiu se abolir. Outros somem e tentam recomeçar do zero.
Recentemente, uma leitora me
pediu que a ajudasse na procura
de um familiar amado, que sumiu. Pois bem. Mensagem a um
"desaparecido" que lesse esta coluna: para nós também, para todos nós, desejar sem transformar
nossos próprios desejos em obrigações é uma tarefa para além de
difícil.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Crítica: Para diretor iraniano, cinema é pintura Próximo Texto: Panorâmica - Literatura: Novo Saramago deve ser sair em 2005 Índice
|