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CONTARDO CALLIGARIS
Simulando a vida
Na "New York Times Magazine" de domingo passado, David Brooks (o autor de "Bubos no Paraíso") comentava o
lançamento da versão on-line dos
"Sims".
Os "Sims" (os simulados) é um
jogo para computador que existe
desde 2000 e que se tornou extremamente popular. Nada a ver
com os cenários de combate de
"Quake" ou "DukeNukem". Nada a ver com o mundo heróico e
fantástico de "Final Fantasy".
Nos "Sims", os jogadores circulam
num habitat parecido com o
mundo da classe média (sobretudo suburbana) e são convidados
a simular a banalidade da vida.
Você volta do trabalho, prepara
o jantar, vai ao shopping, ocupa-se das crianças, chama o encanador, lava os pratos, briga com seu
ex, tenta encontrar alguém interessante para sair, paga as contas
etc. Quando tudo isso acaba, senta-se ao computador e faz tudo de
novo, na tela, simulando. Qual é
a graça?
Eu imaginava, inicialmente,
que a graça consistiria em compensar as frustrações do cotidiano. Os jogadores poderiam se inventar mais bonitos e mais bem-sucedidos. Aproveitariam a simulação para ludibriar seus superiores e pensar, enfim, no seu prazer.
A dita simulação seria, em suma,
uma transformação radical.
Mas a razão do sucesso dos
"Sims" não foi essa. Frequentei
um pouco os sites de discussão para jogadores dos "Sims". Descobri
o seguinte: quem joga na esperança de se tornar Indiana Jones ou
Lara Croft cansa rapidamente. A
maioria dos jogadores assíduos
parece inventar máscaras, mundos e dificuldades iguais às de sua
vida real.
Até agora, essas eram apenas
impressões, pois, como saber o
que cada um faz, jogando sozinho
com o programa, na intimidade
de seu disco rígido? A partir de dezembro, a coisa mudará. Pagando uma pequena mensalidade, os
jogadores internautas poderão
conviver e interagir no mesmo
mundo simulado.
Nos últimos meses, mais de 35
mil pessoas jogaram os "Sims"
nesse mundo virtual comum, com
o intento de testar o sistema (inicialmente previsto para 1 milhão
de jogadores). David Brooks teve
acesso a esse teste e confirma: o
barato dos "Sims" consiste em duplicar as tribulações do cotidiano,
não em escapar para outra vida.
Estranho? Nem tanto.
Somos todos Madame Bovary.
Ou seja, podemos viver na mediocridade, mas sonhamos com
grandes paixões: meu trabalho é
chato, meu parceiro não transa
direito e fala pior ainda, mas leio
Bárbara Cartland e assisto a "Titanic". No entanto, à diferença de
Madame Bovary, nós somos leitores de "Madame Bovary", o livro.
Ou seja, fugimos, como ela, enveredando em sonhos extremos de
amor e de aventura, mas nem toda a ficção, para nós, é evasão ou
compensação. Às vezes, gostamos
de sonhar com a vida que temos e
queremos histórias que mostrem
a banalidade medíocre de nossos
dias, histórias, por exemplo, que
contem a vida de Madame Bovary. Por quê?
Pelas mesmas razões pelas
quais se escrevem diários: para
que a vida de cada dia tenha a
dignidade de uma história contada. Os diários provam que a vida
deve valer, ao menos, a tinta necessária para contá-la. Os "Sims"
têm a mesma função: se volto para casa e simulo meu dia na tela, é
uma maneira de afirmar que minha vida merece ser contada ou
simulada. Quem sabe o jogo no
universo paralelo dos "Sims" reavive, em nossa cultura, o carinho
pela vida como ela é.
Há um outro interesse dos
"Sims". Em sua versão on-line, o
jogo será um laboratório. Psicólogos e sociólogos terão acesso a um
universo construído por milhões
de pessoas que, interagindo, inventam uma vida em comum. É
uma extraordinária ocasião de
descobrir e medir modelos culturais, ideais sociais, tendências etc.
Um exemplo, desde já. David
Brooks relata que, durante o teste
do sistema, Will Wright (inventor
dos "Sims") foi impressionado pelos esforços que muitos jogadores
consagravam à tarefa de encontrar amigos que quisessem compartilhar casa ou apartamento (isso no mundo virtual dos
"Sims"). Parecia que eles estavam
mais preocupados em constituir
um grupo de faixas com quem dividir o aluguel do que em procurar uma alma gêmea com quem viver a dois.
A observação de Will Wright
me fez pensar num adolescente
com quem tenho conversado um
pouco nestes dias. Durante o colégio, ele não teve sorte em amor e
conheceu só prazeres solitários.
Chegado à universidade, eis que
ele gostou de uma moça que gostou dele. Passaram um ano juntos, felizes. De repente, ele quer
sair da relação porque, declara,
tem nostalgia "do grupo dos amigos".
Há razões singulares para essa
vacilação, mas a observação de
Will Wright aponta para uma explicação cultural imprescindível.
Para a geração que chega hoje à
idade adulta, o ideal de uma vida
que valha a pena não é dramático
e intenso, não é, por exemplo,
uma paixão amorosa. Ao contrário, a vida sonhada é leve (ou leviana?) como uma sucessão de
piadas entre amigos. Seu modelo
não é mais a novela, brasileira ou
mexicana que seja, mas o seriado:
justamente, "Seinfeld" ou
"Friends", em que não há amores,
só amigos engraçados que vivem
juntos e se divertem. Como se divertem...
ccalligari@uol.com.br
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