São Paulo, terça-feira, 28 de novembro de 2006

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Desencanto marca longas em Brasília

Festival tem ficções que exploram a derrota, em contraponto à leve esperança de futuro de filmes da safra anterior

Com opções estéticas diversas, novos filmes de Cláudio Assis, Helvécio Ratton e Carlos Cortez deixam otimismo de lado


JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

A julgar pelos longas de ficção que concorrem aos prêmios do 39º Festival de Brasília, o desencanto venceu a esperança no novíssimo cinema brasileiro. Talvez seja casual, mas, à diferença do que ocorre nos filmes da safra imediatamente anterior ("O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", "O Céu de Suely", "Proibido Proibir", "Antônia"), nos quais um vislumbre de futuro aliviava a dureza do presente dos personagens, em "Querô", "Batismo de Fogo" e "Baixio das Bestas" configura-se a derrota irrevogável. É a confirmação dos versos de Drummond: "O mundo não tem mais remédio. Os suicidas tinham razão".
Se algo aproxima esses três filmes tão diversos na temática, na ambientação e nas opções estéticas, é a ausência de saídas. Em "Querô", de Carlos Cortez, o filho de uma prostituta suicida se vê condenado desde o berço (ou da falta dele) a uma vida de rejeição e desamparo, à qual a única reação cabível é a do ódio. Brutalidade contra brutalidade, o círculo vicioso da barbárie está concentrado nos olhos ferozes do extraordinário ator adolescente Maxwell Nascimento. Na paisagem de abandono dos arredores do porto de Santos, que espelha em seus armazéns vazios e vagões de trens enferrujados a alma exaurida do protagonista, não há possibilidade de redenção, e a única epifania que resta (a mãe ausente que surge no rosto de uma prostituta) só podia ser ilusória, mero delírio de um moribundo.

Mundo misógeno
Um cenário de decadência e estagnação também emoldura -e em grande medida determina- a ação dos personagens de "Baixio das Bestas", segundo longa do pernambucano Cláudio Assis. Na comunidade que subsiste em torno de um engenho de cana desativado, uma adolescente é explorada sexualmente pelo avô, que a exibe nua aos machos da região para fins masturbatórios.
Os boçalizados jovens de classe média do local se reúnem num cinema abandonado para dar vazão a suas bebedeiras, curras e confusas especulações filosóficas. Nesse mundo misógino e doentio, as mulheres apenas entram em cena para apanhar e serem vítimas de abuso sexual.
A protagonista, que tem o nome revelador de Auxiliadora (Mariah Teixeira), faz lembrar a Mouchette de Robert Bresson. Mas, ao contrário desta última, que se suicida para fazer frente ao horror, Auxiliadora se entrega ao destino que podemos antever na figura das prostitutas locais de várias gerações. Outra vez, não há saída.
O paradoxo, em "Baixio", é que esse mundo de homens destrambelhados e mulheres condenadas que o crítico Ismail Xavier qualificou de "uma estação do inferno" é retratado em imagens de uma beleza extraordinária, em longos planos bem compostos, com a predileção já demonstrada anteriormente pelo diretor pela câmera alta e pela iluminação parcial, que quase sempre deixa zonas de sombra no corpo e no entorno dos personagens. É difícil saber quanto do filme é criação de Assis e quanto se deve ao veterano diretor de fotografia Walter Carvalho.
Por fim, há "Batismo de Sangue", de Helvécio Ratton, reconstituição do martírio do frei dominicano Tito de Alencar, que se enforcou em 1974 na França, depois de ter sido torturado pela ditadura militar e banido do Brasil.
Nesse longa-metragem, a redução da paleta cromática operada com maestria pelo experiente fotógrafo Lauro Escorel vai além do intuito de reconstituição de época, remetendo ao progressivo esgotamento da seiva vital do protagonista (o ótimo Caio Blat).
Cheio de energia e generosidade no início da narrativa, Tito vê a maldade do mundo vencer sua fé. Um tanto explicativo e teatral na construção do painel histórico, o filme ganha densidade ao se aprofundar no drama do protagonista, cujo corpo e cuja alma constituíram um campo de batalha das forças da política e da religião. Um campo devastado, como o porto de "Querô" e o canavial incendiado de "Baixio".


O colunista José Geraldo Couto viajou a convite do Festival de Brasília

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