São Paulo, sábado, 28 de novembro de 2009

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Crítica/"Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk"

Autor russo mostra a temporalidade do sofrimento por amor

Em primeira tradução de Nikolai Leskov para o português, personagens são criaturas atadas ao mundo em que vivem

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Em português, aumenta a distância que nos separa de Nikolai Leskov. Sim, pois, de acordo com Walter Benjamin, que escreveu um de seus ensaios mais inspirados -"O Narrador"- baseado na obra do romancista russo, "descrever Leskov como narrador não significa trazê-lo para mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele".
De fato, ao lermos o romance "Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk", primeira e brilhante tradução do romancista russo para o português, pela Editora 34, nos assustamos com algo que soa como "ênfase excessiva", "grandiloquência".
Benjamin, mais uma vez, estava certo. Nós, leitores de cerca de 70 anos após sua morte, estamos ainda mais habituados do que os leitores de sua época à ausência de dramaticidade, a uma relativa indiferença que soa mais elegante aos nossos ouvidos espertos e acostumados à informação rápida ou aos diálogos e ações de temperatura média das narrativas atuais.
A mulher entediada de uma propriedade russa do interior do século 19, que mata sucessivos parentes, ama o criado, é enviada para trabalhos forçados nos confins da Rússia e faz declarações extasiadas de amor, soa antiquada e artificial.
Ainda segundo Walter Benjamin, a experiência propriamente dita nunca esteve tão em baixa, e o ideal de um mundo incapaz de narrar é o "homem que não se prende demasiadamente a ele". Pois em Leskov as personagens são criaturas extremamente atadas ao mundo em que vivem, vivendo com intensidade desesperada e coletiva cada ação narrada e, além disso, dispostas a vivenciar experiências, fazendo com que o leitor se disponha a elas.
Por experiência, na acepção benjaminiana, entende-se uma integração única entre sujeito e objeto, falante e ouvinte, em que o tempo se distende no sentido da transmissão de uma memória, de um ensinamento.
De fato, os romances de Leskov contêm uma moral clara, tanto na linguagem quanto no desen-rolar dos acontecimentos: trata-se das falas do povo russo, com quem o autor conviveu intensamente através de viagens realizadas por todos os cantos do país, e das histórias contadas por essas pessoas. Leskov, como conta o tradutor Paulo Bezerra, no posfácio ao livro, dizia que era preciso não "estudar o povo russo, mas vivê-lo".
Essa é sua moral, e é preciso acreditar nestas personagens, que veem gatos inexistentes (representando a culpa), que matam por amor, que lutam literalmente pelo homem -cafajeste- que dizem amar, que passam fome e corrompem até o último centavo por ciúmes.
São personagens nossos familiares, mesmo aqui, tão distante da Rússia no espaço e no tempo. Porque, como diz Tolstói, de quem Leskov se tornou posteriormente adepto, "quanto mais particular, mais geral". E não há nada mais geral do que a particularidade do sofrimento por amor, aqui ou em Mtzensk, no século 19 e, acreditem, até mesmo no século 21.


LADY MACBETH DO DISTRITO DE MTZENSK

Autor: Nikolai Leskov
Tradução: Paulo Bezerra
Editora: 34
Quanto: R$ 28 (96 págs.)
Avaliação: ótimo




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