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Crítica/"Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk"
Autor russo mostra a temporalidade do sofrimento por amor
Em primeira tradução de Nikolai Leskov para o português, personagens são criaturas atadas ao mundo em que vivem
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Em português, aumenta
a distância que nos separa de Nikolai Leskov.
Sim, pois, de acordo com Walter Benjamin, que escreveu um
de seus ensaios mais inspirados
-"O Narrador"- baseado na
obra do romancista russo, "descrever Leskov como narrador
não significa trazê-lo para mais
perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que
nos separa dele".
De fato, ao lermos o romance
"Lady Macbeth do Distrito de
Mtzensk", primeira e brilhante
tradução do romancista russo
para o português, pela Editora
34, nos assustamos com algo
que soa como "ênfase excessiva", "grandiloquência".
Benjamin, mais uma vez, estava certo. Nós, leitores de cerca de 70
anos após sua morte, estamos
ainda mais habituados do que
os leitores de sua época à ausência de dramaticidade, a uma
relativa indiferença que soa
mais elegante aos nossos ouvidos espertos e acostumados à
informação rápida ou aos diálogos e ações de temperatura média das narrativas atuais.
A mulher entediada de uma
propriedade russa do interior
do século 19, que mata sucessivos parentes, ama o criado, é
enviada para trabalhos forçados nos confins da Rússia e faz
declarações extasiadas de
amor, soa antiquada e artificial.
Ainda segundo Walter Benjamin, a experiência propriamente dita nunca esteve tão em
baixa, e o ideal de um mundo
incapaz de narrar é o "homem
que não se prende demasiadamente a ele". Pois em Leskov as
personagens são criaturas extremamente atadas ao mundo
em que vivem, vivendo com intensidade desesperada e coletiva cada ação narrada e, além
disso, dispostas a vivenciar experiências, fazendo com que o
leitor se disponha a elas.
Por experiência, na acepção
benjaminiana, entende-se uma
integração única entre sujeito e
objeto, falante e ouvinte, em
que o tempo se distende no
sentido da transmissão de uma
memória, de um ensinamento.
De fato, os romances de Leskov
contêm uma moral clara, tanto
na linguagem quanto no desen-rolar dos acontecimentos: trata-se das falas do povo russo,
com quem o autor conviveu intensamente através de viagens
realizadas por todos os cantos
do país, e das histórias contadas
por essas pessoas. Leskov, como conta o tradutor Paulo Bezerra, no posfácio ao livro, dizia
que era preciso não "estudar o
povo russo, mas vivê-lo".
Essa é sua moral, e é preciso
acreditar nestas personagens,
que veem gatos inexistentes
(representando a culpa), que
matam por amor, que lutam literalmente pelo homem -cafajeste- que dizem amar, que
passam fome e corrompem até
o último centavo por ciúmes.
São personagens nossos familiares, mesmo aqui, tão distante da Rússia no espaço e no
tempo. Porque, como diz Tolstói, de quem Leskov se tornou
posteriormente adepto, "quanto mais particular, mais geral".
E não há nada mais geral do que
a particularidade do sofrimento por amor, aqui ou em
Mtzensk, no século 19 e, acreditem, até mesmo no século 21.
LADY MACBETH DO
DISTRITO DE MTZENSK
Autor: Nikolai Leskov
Tradução: Paulo Bezerra
Editora: 34
Quanto: R$ 28 (96 págs.)
Avaliação: ótimo
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