|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/ "Cabeza de Vaca"
Markun relativiza heroísmo de conquistador
OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em "Cabeza de Vaca",
Paulo Markun matiza
um personagem que,
embora secundário na história
do Brasil, era pintado como herói utópico e humanista.
O espanhol Álvar Núñez Cabeza de Vaca nasceu por volta
de 1487 e teria vivido 70 anos.
Sua vida foi marcada por duas
grandes aventuras. Entre 1528
e 1536, participou da primeira
expedição pelo interior do sul
dos Estados Unidos, sendo um
dos quatro sobreviventes do
grupo de centenas de europeus.
Cabeza de Vaca vagou mais
de 4.000 quilômetros, cruzou
com tribos indígenas, foi escravizado por algumas delas e adorado por outras. As peripécias
estão registradas no clássico
"Naufrágios".
A segunda aventura é a que o
liga ao Brasil. Preterido como
governador da região que explorara, decidiu partir para o
rio da Prata, em busca de supostas riquezas. Em 1541, Cabeza de Vaca chegou à ilha de
Santa Catarina, onde mais de
um século depois seria fundada
Florianópolis. Ficou quase sete
meses lá, antes de se embrenhar pelo continente por rio, o
que descreveu em seu segundo
livro, "Comentários".
Na condição de governador
da região, Cabeza de Vaca liderou arriscada expedição em
busca de prata. Na volta, tendo
fracassado, foi deposto, preso e,
em 1545, repatriado por opositores. Condenado, teve a pena
de exílio na África anulada e pôde publicar os dois relatos em
que defendeu sua vida pública.
A posteridade incensou Cabeza de Vaca. Na edição brasileira de seus livros, é apresentado como arquiteto de um "governo igualitário nos confins da
América do Sul" e defensor de
uma "política indigenista infinitamente mais ética do que a
de seus contemporâneos".
O grande mérito de Markun é
relativizar essa imagem. Depois de dez anos de pesquisas,
tendo se valido da transcrição
de 900 páginas de manuscritos
do século 16, o autor concluiu,
algo decepcionado, que o mítico sonhador era só um homem
de seu tempo, cheio de contradições, e que, apesar de a vivência entre índios ter afetado sua
perspectiva, "foi incapaz de
produzir alternativa eficiente e
humana para a conquista".
O autor é rigoroso com seu
personagem. Cotejando versões, atribui ao espanhol saques e abandono de enfermos,
fatos que, aliados ao heroísmo
do sobrevivente, lhe dão dimensão mais humana.
Para Markun, "Comentários" não passa de "oba-oba". A
linguagem de "Cabeza de Vaca", aliás, é coloquial, às vezes
excessivamente: "bater as botas" e "turma do deixa-disso"
são exemplos de expressões
que poderiam ser eliminadas
sem prejuízo da narrativa.
O personagem, de todo modo, para em pé, e é isso o que interessa numa biografia. Hoje
presidente da Fundação Padre
Anchieta, o jornalista Paulo
Markun tem no currículo vários livros de história, como o
ambicioso "Anita Garibaldi,
uma Heroína Brasileira", com o
qual "Cabeza de Vaca"ombreia.
OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de, entre outros livros, "A História do Brasil no Século
20"e "A Aventura do Dinheiro", pela Publifolha.
CABEZA DE VACA
Autor: Paulo Markun
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 42 (286 págs.)
Avaliação: bom
Texto Anterior: Livros: Obra traz Dawkins na melhor forma Próximo Texto: Crítica/"Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk": Autor russo mostra a temporalidade do sofrimento por amor Índice
|