São Paulo, sábado, 28 de novembro de 2009

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Crítica/ "Cabeza de Vaca"

Markun relativiza heroísmo de conquistador

OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "Cabeza de Vaca", Paulo Markun matiza um personagem que, embora secundário na história do Brasil, era pintado como herói utópico e humanista. O espanhol Álvar Núñez Cabeza de Vaca nasceu por volta de 1487 e teria vivido 70 anos.
Sua vida foi marcada por duas grandes aventuras. Entre 1528 e 1536, participou da primeira expedição pelo interior do sul dos Estados Unidos, sendo um dos quatro sobreviventes do grupo de centenas de europeus.
Cabeza de Vaca vagou mais de 4.000 quilômetros, cruzou com tribos indígenas, foi escravizado por algumas delas e adorado por outras. As peripécias estão registradas no clássico "Naufrágios".
A segunda aventura é a que o liga ao Brasil. Preterido como governador da região que explorara, decidiu partir para o rio da Prata, em busca de supostas riquezas. Em 1541, Cabeza de Vaca chegou à ilha de Santa Catarina, onde mais de um século depois seria fundada Florianópolis. Ficou quase sete meses lá, antes de se embrenhar pelo continente por rio, o que descreveu em seu segundo livro, "Comentários".
Na condição de governador da região, Cabeza de Vaca liderou arriscada expedição em busca de prata. Na volta, tendo fracassado, foi deposto, preso e, em 1545, repatriado por opositores. Condenado, teve a pena de exílio na África anulada e pôde publicar os dois relatos em que defendeu sua vida pública.
A posteridade incensou Cabeza de Vaca. Na edição brasileira de seus livros, é apresentado como arquiteto de um "governo igualitário nos confins da América do Sul" e defensor de uma "política indigenista infinitamente mais ética do que a de seus contemporâneos".
O grande mérito de Markun é relativizar essa imagem. Depois de dez anos de pesquisas, tendo se valido da transcrição de 900 páginas de manuscritos do século 16, o autor concluiu, algo decepcionado, que o mítico sonhador era só um homem de seu tempo, cheio de contradições, e que, apesar de a vivência entre índios ter afetado sua perspectiva, "foi incapaz de produzir alternativa eficiente e humana para a conquista".
O autor é rigoroso com seu personagem. Cotejando versões, atribui ao espanhol saques e abandono de enfermos, fatos que, aliados ao heroísmo do sobrevivente, lhe dão dimensão mais humana. Para Markun, "Comentários" não passa de "oba-oba". A linguagem de "Cabeza de Vaca", aliás, é coloquial, às vezes excessivamente: "bater as botas" e "turma do deixa-disso" são exemplos de expressões que poderiam ser eliminadas sem prejuízo da narrativa.
O personagem, de todo modo, para em pé, e é isso o que interessa numa biografia. Hoje presidente da Fundação Padre Anchieta, o jornalista Paulo Markun tem no currículo vários livros de história, como o ambicioso "Anita Garibaldi, uma Heroína Brasileira", com o qual "Cabeza de Vaca"ombreia.

OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de, entre outros livros, "A História do Brasil no Século 20"e "A Aventura do Dinheiro", pela Publifolha.


CABEZA DE VACA

Autor: Paulo Markun
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 42 (286 págs.)
Avaliação: bom




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