São Paulo, Terça-feira, 28 de Dezembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTES PLÁSTICAS

Mostra em Porto Alegre esclarece Iberê

CELSO FIORAVANTE
enviado especial a Porto Alegre

Um dos méritos da 2ª edição da Bienal do Mercosul, em cartaz em Porto Alegre até o dia 9 de janeiro, é o fato de proporcionar uma importante contribuição para a compreensão da obra do pintor Iberê Camargo (1914-1994).
Uma mostra antológica, com cerca de 80 obras, entre pinturas, desenhos e gravuras, apresenta a produção do artista gaúcho com uma coerência exemplar.
Esse era um dos objetivos da curadora Lisette Lagnado, que pretendeu apresentar a continuidade existente entre as diversas fases do pintor. Para isso, recorreu a uma imagem arquetípica na produção de Iberê desde os anos 40: os carretéis.
Segundo a curadora, os carretéis seriam uma representação da memória, pois remetem aos seus brinquedos de infância. "Carretéis que guardam os fios da memória são também como pássaros oníricos do pensamento, que trazem para perto o distante, mas que também distanciam as lembranças", escreve ela no início da mostra, que traz, além de um pequeno texto seu, apenas uma biografia e frases do artista intercaladas às obras.
Em uma delas, Iberê explica sua relação com a memória: "No meu andarilhar de pintor, fixo a imagem que se me apresenta no agora, como retorno às coisas que adormeceram na memória. Essas devem estar escondidas no pátio da infância. Gostaria de outra vez ser criança para resgatá-las com as mãos. Talvez foi o que fiz, pintando-as".
Lagnado chega a ser discreta no conceito para a mostra ao relacionar os carretéis apenas à memória do artista, uma vez que a própria mostra deixa a impressão de que Iberê quis falar muito mais com seus carretéis.
Em alguns trabalhos, a presença de carretéis isolados transmitem a sensação de solidão e isolamento tão prezada pelo artista. Mesmo quando reunidos em grupos, o que ressalta não é a organização ou a comunhão dos elementos, mas um equilíbrio precário típico das relações humanas.
É interessante notar as transformações que os carretéis vão sofrendo com o passar dos anos e como eles podem ser vistos como representantes de outras relações, que não apenas a do pintor com sua memória.
Em alguns trabalhos, Iberê os apresenta com cortes transversais ou laterais, o que lhes dá características cubistas, como se pudessem ser vistos de frente e de lado simultaneamente. Em outros, seu orifício fica visível, como se o carretel estivesse sendo visto em um aparelho de raio x.
Os carretéis perdem suas rígidas e unívocas estruturas e podem ser vistos como representações estilizadas de seres humanos (ou do próprio artista, na medida em que se trata de sua memória) ou mesmo de colunas prontas para estabelecer uma conexão entre a Terra e o infinito, como elementos de uma paisagem arquitetônica.
Essas questões foram abordadas no livro "Conversações com Iberê Camargo" (Iluminuras), da própria curadora da mostra.
Na página 32, Iberê diz: "O pintor sempre encarna as figuras que pinta. Ele as cria à sua imagem e semelhança... Admito que minhas figuras se me assemelham". Não é raro encontrar em suas figuras humanas a repetição das formas básicas do carretel, agora transformadas em pernas, mãos, peitos e pés.
Sobre os carretéis, à página 27, Iberê diz: "Minha pintura em nenhum momento abandonou a estruturação da fase dos carretéis. Esses, embora pareçam soltos, livres no espaço (fundo) do quadro, estão solidamente interligados por linhas de força, como os corpos celestes no sistema planetário".
Os carretéis, assim como boa parte das imagens criadas por Iberê, se portam como fantasmas que retornam incessantemente.
Mesmo em uma de suas séries mais conhecidas, "Ciclistas", em que outra imagem arquetípica assume o lugar dos carretéis, o que reencontramos são os próprios carretéis transformados.
Na série "Ciclistas" há uma clara transformação das formas elementares dos carretéis. O corpo do carretel vira a barra da bicicleta, sua base se transforma na roda do veículo. Em alguns carretéis, Iberê chega mesmo a desenhar linhas em suas bases, algo que lembra os aros das rodas das bicicletas. "Parece-me que minha pintura sempre procura resgatar o passado, reencontrar as coisas que foram soterradas e ficaram perdidas no pátio", diz Iberê à página 41 de "Conversações com Iberê Camargo".


Mostra: Iberê Camargo (desenhos, gravuras e pinturas), parte integrante da 2ª Bienal do Mercosul Curadora: Lisette Lagnado Quando: de ter. a dom., das 10h às 22h. Até 9 de janeiro Onde: Museu de Arte do Rio Grande do Sul (praça da Alfândega, s/nº, Porto Alegre) Patrocínio: Grupo Gerdau, Ipiranga, Banco Real, Abifarma, Azaléia e Rio Grande Energia


O jornalista Celso Fioravante viajou a convite da organização do evento

Texto Anterior: Vida Bandida- Voltaire de Souza: Cristal
Próximo Texto: Pintor encontra Lupicínio
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.