São Paulo, Terça-feira, 28 de Dezembro de 1999


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TEATRO

Radicado no Brasil há 45 anos, o cenógrafo italiano traça evolução histórica do ofício em novo livro

Vigia do teatro, Ratto lança "Antitratado"

VALMIR SANTOS
free-lance para a Folha

Em "Por Trás do Pano", o filme de Luiz Villaça, ele atua como porteiro de um teatro. Nas cenas, o seu personagem repete um bordão: "Tubo bem, muito obrigado". E peleja para sintonizar um radinho de pilha. Corta. Cortina.
"Eu sou mesmo um vigia do teatro", ratifica Gianni Ratto, 83, cenógrafo, diretor e ator italiano remanescente da turma de encenadores conterrâneos que chegou ao país no pós-guerra (Adolfo Celi, Ruggero Jacobbi).
Desde o início da carreira na Itália (1945), até a vinda para o Brasil (1954), Ratto sempre perseguiu uma "poética" presente dentro ou fora do palco. Seu novo livro é mais um exercício dessa busca.
"Antitratado de Cenografia -Variações sobre o Mesmo Tema" traça a evolução da cenografia desde a Grécia antiga até os dias que correm, sempre sob a perspectiva do "homem de serrote e martelo", como se autodefine.
Ratto trabalhou com a soprano Maria Callas (Piccolo Teatro de Milão) e com o ator e diretor Ziembinski. Sua última montagem em São Paulo foi "Vermouth" (1998), de Aimar Labaki.
Em entrevista à Folha, ele comenta o livro e a cenografia contemporânea.

Folha - Em "Antitratado", o sr. volta a afirmar que a cenografia morreu? Por quê?
Gianni Ratto -
Quando se fala que a cenografia morreu, é porque ela renasceu, perdeu aquele papel decorativo e ganhou uma função criativa. Penso que ela tem de ser absorvida no conjunto de elementos do teatro, como um instrumento dentro de uma orquestra. Há os solistas, mas predomina uma forma homogênea.
É um conflito muito vago porque, até hoje, existe muita gente que faz cenografia como ontem, anteontem, assim como existem os novos que procuram a identidade poética. O que me importa é que o público nem perceba que o cenário está no palco.

Folha - É como delegar ao espectador a construção imaginária do espaço cênico?
Ratto -
É a relação ideal. O espaço aparentemente absorve tudo que existe sobre o palco e você participa de um drama emocional, crítico. Aquele espaço que envolve os personagens, que hoje chamamos de cenografia, figurino, iluminação, cria seus valores dramáticos visuais, aparentemente invisíveis, mas que, na realidade, são percebidos por quem está assistindo. O deslocamento do ator transforma o espaço a partir da criatividade do público.

Folha - Sua condição de cenógrafo e diretor certamente colabora para essa percepção. O sr. acredita que o cenógrafo precisa ampliar cada vez mais sua forma de atuação?
Ratto -
Acho que sim. Se a gente fala de iluminação, por exemplo, que é um dos aspectos que compõem o cenário, a gente vai trabalhar com cores, com luminosidades, ou seja, fatores fundamentais para a criação. Eu acompanhei ensaios de orquestra quando era criança, o que me deu uma profunda compreensão da música.

Folha - O que o sr. quer dizer com "cidadania teatral"?
Ratto -
Sou uma pessoa muito instintiva, mas racional por outro lado. Não sou teórico, mas estou sempre disponível. A minha disponibilidade está exatamente em não poder definir, procurar além da própria definição. Qualquer labor de um criador requer um cuidado, uma severidade, uma honestidade...Você pode não ser criativo, mas seja profundamente honesto. O resto é consequência.

Folha - O sr. dedica o livro a Tomás Santa Rosa (1909-56) e Flávio Império (1935-85). Como foi a relação com os cenógrafos?
Ratto -
Quando cheguei ao Brasil, em 1954, nem sabia que existia Ziembinski ou Santa Rosa. Quando entrei em contato com eles, percebi que havia mundos novos, descortinei outra paisagem. O encontro com Santa Rosa e, mais tarde, com Flávio Império, olhando panoramicamente para a história do teatro no Brasil, me leva a uma imagem que até pode ser simplista: eles equivalem a um grande arco, sustentado por duas colunas: Santa Rosa, de um lado, Flávio, de outro. Cada um marcou um momento histórico. Santa Rosa, pela condição seminal com "Vestido de Noiva", em 1943. E Flávio, pela criatividade.

Folha - Como o sr. vê a incorporação de maquinários e efeitos tecnológicos?
Ratto -
Existem dois aspectos fundamentais: um é o da tradicional tecnologia, que ocupa os espaços que tem de ocupar; apesar de estarmos perdendo a tecnologia da construção do cenário, da magia. De outro lado, a tecnologia fundamentada na informática, que tem propostas absolutamente fantásticas. Se essa for incorporada positivamente, tudo bem.

Folha - Como é o relacionamento com as novas gerações de cenógrafos?
Ratto -
Eu dialogo muito bem, tentando levá-los para o meu caminho, é lógico (risos). Alguns jovens propõem uma sopa já cozida, demonstrando uma habilidade fantástica. Mas eu procuro uma sopa de feijão feita com muito amor, carinho. Não me interessa aquela receita do maître com vários efeitos de sabores.

Folha - Em "A Mochila do Mascate" (96), há uma dedicatória àqueles que o rotulam como "reacionário, acadêmico e careta". Como reage a essas críticas?
Ratto -
Se eu fosse ligar para o que eles dizem sobre mim... Pertencemos a um mundo permanentemente em evolução. Com 83 anos, eu não poderia estar preocupado com academicismo.

Folha - O sr. participou de dois filmes nacionais recentes: "Sábado", de Ugo Giorgetti, e "Por Trás do Pano", de Luiz Villaça. Como foi a experiência?
Ratto -
Em "Sábado", eu fazia um cadáver. Era o tipo de papel que adoro, porque não tem texto. Para mim, cinema é antitexto, é imagem. Naquele caso, me identifiquei totalmente com a imobilidade. Em "Por Trás do Pano", o porteiro é o homem que vigia o teatro. Eu sou um vigia do teatro. E também tinha outra coisa fantástica: eu repetia uma única frase. Me diverti muito.


Livro: Antitratado de Cenografia -Variações sobre o Mesmo Tema
Autor: Gianni Ratto
Editora: Senac
Quanto: R$ 35 (188 págs.)




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