São Paulo, sexta-feira, 28 de dezembro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

A verdadeira história da corcunda de Bernardo Thrull

Machado de Assis estranhava que no tempo dele já havia velhos, mas poucos. Eu estranho que no meu tempo havia corcundas, mas muitos. Hoje, é difícil a gente esbarrar num. Mas, antigamente, não havia bairro, não havia rua nem vila de casas que não tivesse um corcundinha, que era simpático, bem aceito e tudo fazia para que todos esquecessem o problema, sendo ele o primeiro a esquecer.
Os corcundas jogavam pelada, namoravam, frequentavam escolas, exerciam empregos, embora tivessem certas fixações profissionais mais ou menos inexplicáveis. Alguns eram alfaiates, outros motorneiros da Light, havia um dr. Aristão que era médico homeopata e considerado infalível em curar coqueluche e doenças infantis. Na igrejinha de Nossa Senhora da Guia, havia até um frade da ordem dos servitas (OSM) que era italiano e corcunda, chamava-se Egidio e tinha a fama de já ter visto o Diabo, em pessoa, sentado num banco da sacristia, pensando na vida ou, quem sabe, pensando em mudar de vida.
O mais estranho é que todos os fotógrafos que conheci na cidade, desses que tiravam fotos de primeira comunhão, de casamento, fotos para documentos etc. eram corcundas. Eu ficava pasmo quando, diante de um deles, depois de maquiado e iluminado, ele me mandava olhar o passarinho e se metia embaixo de um pano preto que lhe dava visão para a complicada máquina que usava, do tamanho de uma câmera de TV das antigas. O pano preto cobria-o todo, inclusive a protuberância na espinha. Mal comparando, parecia um camelo pequeno e desgarrado de suas areias.
Conto isso não para violar o preceito do politicamente correto, que recomenda não discriminar deficientes físicos -embora um corcunda não seja, tecnicamente, um deficiente, pois é capaz de viver, trabalhar, amar e produzir normalmente. Nos tempos de Victor Hugo, eles davam excelentes sineiros, mas hoje, embora raros, eles podem (como já disse acima) exercer qualquer profissão e viver como qualquer outra pessoa.
Mas prometi, semana passada, contar a verdadeira história de Bernardo Thrull, que foi proibido de pisar em solo argentino após uma partida internacional em que, atuando como bandeirinha, acusou um impedimento inexistente de um tal de Mendez, do Boca Juniors, fez o juiz anular o gol e desclassificou a Argentina naquela distante Copa Rocca dos anos 30.
Bernardo Thrull era corcunda, todos pensavam que era brasileiro, carioca de Aldeia Campista, mas, na verdade, era russo, nascido na Ucrânia, e aqui viera numa das levas de imigrantes que fugiam dos pogroms do general Petlura.
Já chegou corcunda ao Brasil, mas não nascera tal. Por isso havia lendas, ou melhor, três versões sobre o fato de ter a espinha partida. A primeira hipótese, adotada por ele próprio, era que nascera com o defeito de fabricação. Não era verdade. Nos guardados da família, havia uma foto em que Bernardo Thrull, então com 12 ou 13 anos, ainda não era corcunda.
A segunda teoria era heróica. Numa bordoada geral nas ruas de Kiev, Bernardo Thrull, então com 14 anos, viu um soldado chutando uma velha que estava caída no chão. Atracou-se com o soldado, mas aí vieram outros soldados e deram uma sova em Bernardo, inclusive usando os rifles que portavam. Numa porrada seca, letal, quebraram a espinha de Bernardo Thrull. Mas ele havia salvo uma velha que estava sendo massacrada.
Li esta versão num release que o próprio Bernardo Thrull distribuía todas as vezes em que se candidatava à presidência do Sindicato dos Empresários e Promotores Artísticos, pois Bernardo era empresário de boxe, catch, luta livre e, diziam as más línguas, de brigas de galo, que eram proibidas pela polícia, mas eram comuns em todos os bairros da zona norte do Rio.
A terceira versão pode não ser a verdadeira, mas era a mais confiável, pois eu conhecia os personagens que dela participaram e acho que a história "makes sense", faz sentido.
Ainda em Kiev, Bernardo morava com os primos, 17 ao todo, a família era gregária, e todos trabalhavam na gráfica do patriarca, que era homem severo e rico, mas sovina. Para terem algum dinheiro no bolso, os primos, mais ou menos na mesma faixa etária, toparam uma idéia que ele teve: fazer um circo. A vocação de empresário já vinha desde aquela remota época e, tendo jeito para a coisa, foi fácil arranjar um terreno baldio, improvisar umas arquibancadas, uma bilheteria e um tapume para que outros meninos pagassem a entrada do circo.
Os artistas? Bernardo não se apertou. A prima Ruth cantava "Olhos Negros". A prima Berta dançava "A Morte do Cisne", o primo Simeão fazia mágicas (as fez pelo resto da vida, tornando-se agente de câmbio na rua do Acre). O primo Bóris, que era fortão, imenso de músculos, era o Homem Montanha, quebrava correntes de ferro com um soco de sua poderosa mão eslava.
Acontece que desconfiaram de Bernardo. Ele cobrava ingressos da meninada, mas ficava com o dinheiro. Bóris, o Homem Montanha, ficou furioso quando soube disso. Deu-lhe um soco nas costas, e Bernardo Thrull ficou corcunda até o fim de seus dias.


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