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DRAUZIO VARELLA
A descoberta do vírus da Aids
O vírus da Aids foi identificado em dois anos e meio.
Jamais uma doença infecciosa teve sua causa esclarecida em período tão curto. A autoria da descoberta, no entanto, foi cercada
de controvérsias entre dois grupos: o de Luc Montagnier, do Instituto Pasteur, na França, e o de
Robert Gallo, do National Cancer
Institute (NCI), nos EUA.
Coincidindo com o Dia Internacional da Aids deste ano, a revista
"Science" pediu aos dois protagonistas que contassem suas versões
a respeito dos acontecimentos que
levaram à descoberta.
Ao surgirem os primeiros casos
de Aids em São Francisco e Nova
York, Gallo suspeitou que um retrovírus fosse o responsável pela
infecção. Segundo Montagnier,
"essa idéia cruzou o Atlântico" e
foi encontrá-lo em Paris no final
de 1982 pesquisando retroviroses
em culturas de glóbulos brancos
por meio de uma técnica desenvolvida anos antes por Gallo, no
NCI.
Em janeiro de 1983, Montagnier
cultivou células obtidas por biópsia de um gânglio de um jovem
homossexual francês que apresentava ínguas pelo corpo. No rótulo da amostra foram colocadas
as iniciais do paciente: BRU. Poucos meses depois, recebeu amostras de sangue de outro paciente
homossexual (iniciais LAI) portador de um tipo de câncer associado à Aids.
Tanto no gânglio de BRU como
no sangue de LAI foi possível isolar um retrovírus. No microscópio
eletrônico, o grupo francês conseguiu enxergar o vírus isolado e reconhecer nele particularidades
que o diferenciavam dos demais
retrovírus conhecidos. Em maio
de 1983, Montagnier e seu grupo
publicaram o que hoje é considerado o primeiro relato sobre o isolamento do HIV.
A tarefa de manter os vírus de
BRU e LAI em culturas duradouras, entretanto, mostrou-se problemática: enquanto LAI fornecia
culturas de crescimento relativamente fácil, cultivar o vírus de
BRU parecia impossível. Em outubro de 1983, finalmente, foram
obtidas algumas culturas de BRU
e enviadas para estudos em seis
laboratórios diferentes. Um deles
foi o laboratório de Gallo.
Dada a facilidade que os vírus
têm de contaminar culturas, mesmo nas mãos dos virologistas
mais cuidadosos, as culturas catalogadas como BRU, que tinham
sido tão difíceis de crescer, na verdade só puderam ser obtidas porque haviam sido contaminadas
inadvertidamente pelos vírus de
LAI. Assim, as amostras enviadas
com o rótulo de BRU continham
também o vírus de LAI, que era
contaminante.
Em fevereiro de 1983, o francês
Jacques Leibowitch chegou de Paris para visitar o laboratório do
NCI com amostras de sangue colhidas de pacientes com Aids. Numa delas, retirada de um homem
cujas iniciais eram CC, foram isolados dois retrovírus diferentes:
um era o HTLV-1 (descoberto anteriormente pelo próprio Gallo
em leucemias e linfomas), o outro
era uma forma aberrante, posteriormente caracterizada como
HIV.
Com o refinamento das técnicas, Mika Popovic, assistente de
Gallo, foi capaz de cultivar outros
isolados virais obtidos de pacientes americanos. Entre eles, os que
foram identificados pelas siglas
RF, IIIB e MN passaram a ser usados por vários pesquisadores e
conduziram às demonstrações de
que o HIV era realmente o agente
da Aids.
Por crescer com mais facilidade
em cultura de linfócitos, a amostra IIIB foi selecionada por Gallo
e seu grupo para o desenvolvimento do teste que permitiria
identificar os portadores de HIV.
No final de 1984, esse teste foi padronizado e, no ano seguinte, colocado à disposição do mercado.
Foi um enorme avanço no combate à epidemia.
Gallo voou para Paris levando a
amostra IIIB para que o grupo
francês o comparasse com os isolados BRU e LAI. Combinaram
de organizar uma reunião com a
imprensa caso ficasse claro que os
isolados IIIB, BRU e LAI continham o agente da Aids. Não houve tempo. Margareth Heckler, que
ocupava o cargo equivalente ao
de ministro da Saúde no Brasil,
convocou-o a participar de uma
reunião com a imprensa para
anunciar a descoberta do HIV
sem a participação dos pesquisadores da França.
O governo francês reagiu.
Criou-se um litígio internacional
em torno dos direitos de patente,
que culminou com um acordo firmado entre os presidentes Ronald
Reagan e Jacques Chirac, que estabelecia que o Instituto Pasteur e
o NCI dividiriam em partes iguais
o dinheiro obtido. Por serem funcionários públicos, os pesquisadores envolvidos nas descobertas
não receberiam nada.
Para aumentar a confusão,
aconteceu que a amostra IIIB, selecionada por Gallo para a obtenção do teste da Aids, continha o
vírus da amostra cedida por
Montagnier com o rótulo BRU
(que, por sua vez, fora contaminada no próprio Instituto Pasteur
pelo vírus contido na amostra
LAI). O que os americanos chamavam de IIIB continha o vírus
que os franceses chamavam de
BRU, mas que era uma mistura
de BRU com LAI.
A demonstração de que o vírus
IIIB, usado para desenvolver o
teste, tivera origem no Instituto
Pasteur colocou Gallo e Popovic
sob suspeição. Gallo argumentou
que jamais suspeitara da contaminação e que essa mesma amostra havia contaminado outros
isolados em alguns dos melhores
centros de virologia americanos,
mas a argumentação foi de pouca
valia. Popovic foi obrigado a emigrar para a Suécia atrás de trabalho e Gallo foi submetido a uma
investigação por parte das autoridades científicas americanas, que
envolveu até investigadores do
FBI.
Chegou a estar ameaçado de ir
para a cadeia, mas prevaleceu o
bom senso. Robert Gallo é um dos
grandes cientistas da atualidade.
Em seu laboratório, foram dados
alguns dos principais passos que
permitiram decifrar os mecanismos pelos quais o HIV invade os
glóbulos brancos e usá-los como
estratégia para a obtenção de
uma vacina capaz de produzir
imunidade duradoura. Montagnier foi aposentado por idade no
Instituto Pasteur e acabou contratado por uma apagada universidade americana.
Hoje, todos admitem que o vírus da Aids foi descoberto por
Montagnier, Gallo e Jay Levy,
que, concomitantemente, isolou o
HIV na Universidade da Califórnia -mas, sabiamente, sem se
deixar envolver nessa disputa de
interesses tão alheia à ciência.
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