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MARCELO COELHO
Latidos, quaresmeiras e votos de Ano Novo
Quem já morou na Vila Madalena sabe como são terríveis os cachorros de lá. Talvez
porque o bairro, hoje ocupado por
bares boêmios e lojas alternativas, ainda guarde algumas ruas
modestas, de quintais compridos
e casas geminadas: assim, muitos
cães de guarda não adaptaram
seus costumes de subúrbio ao ambiente agora agitado, cheio de vida noturna, seguranças de boate
e valet services. Lembremos também que a topografia do bairro é
bastante irregular, concentrando
os latidos noturnos em poços
inextinguíveis de som.
O fato é que o poeta americano
Vincent Katz -ironicamente,
seu nome quer dizer "gato" em
alemão- resolveu dedicar uma
boa centena de versos aos cães da
Vila Madalena, ou melhor, aos
"Cães de São Paulo": este é o título do poema que recebi encartado
no volume "Rapid Departures-
Partidas Rápidas", recém-lançado pela Ateliê Editorial. Cito sem
marcar os espaços entre um verso
e outro, pois sua escrita tem a
fluência de uma conversa entre
amigos.
"Os cães de São Paulo", começa
o poeta, "são mais livres do que os
cães de Nova York. Sofrem menos
restrições. Os cães de São Paulo
sabem muito mais sobre as mulheres de São Paulo do que você
ou eu. Eles vêem, ouvem, cheiram, e talvez até sintam o gosto
de mais mulheres. Os cães de São
Paulo não têm nomes de seres humanos. Isto traria imenso desprazer aos donos dos homônimos. Os
cães de São Paulo têm nomes como Lua (...) ou Quincas, o nome
do famoso cão do emocionante
romance de Machado de Assis,
Quincas Borba, às vezes em inglês, "The Philosopher and the
Dog", embora eu creia que, se Machado quisesse dar ao livro o título "O Filósofo e o Cão", ele o teria
feito. Quem ainda não leu essa
obra, eu sugiro faça isso sem demora."
E por aí vai, sem economia de
palavras nem de associações de
idéias. Reproduzi apenas os versos iniciais da primeira parte de
um poema que se divide em três,
mas pode-se ter idéia da liberdade com que a escrita de Vincent
Katz vai se desenrolando, como se
andasse a esmo, até o momento
em que conseguimos intuir com
certeza do que se trata tudo aquilo; e então o poeta, como o seu assunto, desistirão de perambular
para voltar ao ponto de partida.
Mas acompanhemos mais um
pouco as vagabundagens desses
versos.
"É muito importante saber o
que somos", continua o segundo
canto do poema. "Os cães de São
Paulo sabem quem são. Não é tão
simples quanto parece, pois os
cães de outros lugares nem sempre sabem quem são. Hoje não se
ouvem muitos cães, pois está chovendo muito. Uma chuva de verão, e os cães, via de regra, não
gostam muito de chuva. Mas os
cães de São Paulo não se importam muito com a chuva fina conhecida como garoa. Quando
não chove é que se tornam muito
audíveis. Acostuma-se a ouvir o
latido de um cão de minutos em
minutos, à distância, e de outros
surpreendentemente próximos."
A partir daí o poeta vai se localizando no bairro da Vila Madalena. Imagina a conversa de um
cachorro com o outro: "Estou na
escuta, amigão. Eu também tenho lá as minhas ansiedades como as que você descreveu". Em seguida, o poema muda de rumo,
dirige-se ao passado, e toca delicadamente no tema da amizade
humana.
"Tudo tão perfeito neste momento: meus pais ainda estão vivos, estou cercado de amigos andando de carro pela noite paulistana, passo pelas bancas de flores
que ficam abertas a noite toda na
Doutor Arnaldo, ao lado do cemitério, onde a avó da minha mulher está enterrada. Um comentário sobre amigos: embora tenham
suas diferenças de vez em quando, há uma solidariedade de fundo que compreende e ultrapassa
essas diferenças, aceitando-as...
Isso tudo parece ter pouco a ver
com cães, especialmente com os
cães de São Paulo, mas não é bem
assim."
Estamos diante de um desses
textos que vão alçando vôo, e as
citações que acabo de fazer já teriam de reproduzir o espaçamento em verso do original, pois é como se o uso do verso fosse aos
poucos se construindo, se estruturando no poema, depois de seu
começo coloquialíssimo. Toda
poesia, afinal, tem de justificar a
sua própria existência, tratando
de inventá-la no momento mesmo de sua enunciação: sua estrutura emocional determina o pulso, a amplidão do metro adotado.
Aos poucos, "Os Cães de São Paulo" se faz como poema. Mas não
importa a teoria. Dos cães, passamos à amizade, e este tema surge
como um pretexto para se falar de
outra coisa ainda mais essencial,
a necessidade de comunicação, o
ato gratuito que é o de escrever, o
de latir.
Traduzidos por Regina Alfarano, os versos de Katz -que há
anos vive no Brasil- procuram
renovar duas lições, a da larga,
democrática, nova-iorquina solidariedade universal de Walt
Whtiman, e a da pureza concentrada, irônica, selvagem, da poesia "Pau-Brasil" de Oswald de
Andrade. Veja-se este poema sobre as quaresmeiras de São Paulo.
"Nada no mundo é mais difícil
do que a candura", declara o poeta na epígrafe. E diz, não se sabe
exatamente para quem: "Quero
olhar você/ com toda candura,/
olhos vazios, que os palcos/ ecoem
canções límpidas".
Esse início lembra a recomendação de Oswald de Andrade no
Manifesto Pau-Brasil: "ver com
olhos livres". Logo em seguida, as
quaresmeiras parecem tomar a
palavra: "as danças trazem luz/
às nossas mãos chuvosas./ Nossas
mãos não conseguem/ contar as
flores/ que começam a se espalhar". O poeta depois se refere à
sua mulher: "ela, aqui comigo,/ à
frente do mundo/ em um ponto
minúsculo e particular/ que se escoa rapidamente/ e nunca se apaga".
Estamos todos à frente do mundo. E não é um voto exagerado de
Ano Novo, eu acho, querer que
nos traga certa candura no olhar.
coelhofsp@uol.com.br
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