São Paulo, quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

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MARCELO COELHO

Latidos, quaresmeiras e votos de Ano Novo

Quem já morou na Vila Madalena sabe como são terríveis os cachorros de lá. Talvez porque o bairro, hoje ocupado por bares boêmios e lojas alternativas, ainda guarde algumas ruas modestas, de quintais compridos e casas geminadas: assim, muitos cães de guarda não adaptaram seus costumes de subúrbio ao ambiente agora agitado, cheio de vida noturna, seguranças de boate e valet services. Lembremos também que a topografia do bairro é bastante irregular, concentrando os latidos noturnos em poços inextinguíveis de som.
O fato é que o poeta americano Vincent Katz -ironicamente, seu nome quer dizer "gato" em alemão- resolveu dedicar uma boa centena de versos aos cães da Vila Madalena, ou melhor, aos "Cães de São Paulo": este é o título do poema que recebi encartado no volume "Rapid Departures- Partidas Rápidas", recém-lançado pela Ateliê Editorial. Cito sem marcar os espaços entre um verso e outro, pois sua escrita tem a fluência de uma conversa entre amigos.
"Os cães de São Paulo", começa o poeta, "são mais livres do que os cães de Nova York. Sofrem menos restrições. Os cães de São Paulo sabem muito mais sobre as mulheres de São Paulo do que você ou eu. Eles vêem, ouvem, cheiram, e talvez até sintam o gosto de mais mulheres. Os cães de São Paulo não têm nomes de seres humanos. Isto traria imenso desprazer aos donos dos homônimos. Os cães de São Paulo têm nomes como Lua (...) ou Quincas, o nome do famoso cão do emocionante romance de Machado de Assis, Quincas Borba, às vezes em inglês, "The Philosopher and the Dog", embora eu creia que, se Machado quisesse dar ao livro o título "O Filósofo e o Cão", ele o teria feito. Quem ainda não leu essa obra, eu sugiro faça isso sem demora."
E por aí vai, sem economia de palavras nem de associações de idéias. Reproduzi apenas os versos iniciais da primeira parte de um poema que se divide em três, mas pode-se ter idéia da liberdade com que a escrita de Vincent Katz vai se desenrolando, como se andasse a esmo, até o momento em que conseguimos intuir com certeza do que se trata tudo aquilo; e então o poeta, como o seu assunto, desistirão de perambular para voltar ao ponto de partida. Mas acompanhemos mais um pouco as vagabundagens desses versos.
"É muito importante saber o que somos", continua o segundo canto do poema. "Os cães de São Paulo sabem quem são. Não é tão simples quanto parece, pois os cães de outros lugares nem sempre sabem quem são. Hoje não se ouvem muitos cães, pois está chovendo muito. Uma chuva de verão, e os cães, via de regra, não gostam muito de chuva. Mas os cães de São Paulo não se importam muito com a chuva fina conhecida como garoa. Quando não chove é que se tornam muito audíveis. Acostuma-se a ouvir o latido de um cão de minutos em minutos, à distância, e de outros surpreendentemente próximos."
A partir daí o poeta vai se localizando no bairro da Vila Madalena. Imagina a conversa de um cachorro com o outro: "Estou na escuta, amigão. Eu também tenho lá as minhas ansiedades como as que você descreveu". Em seguida, o poema muda de rumo, dirige-se ao passado, e toca delicadamente no tema da amizade humana.
"Tudo tão perfeito neste momento: meus pais ainda estão vivos, estou cercado de amigos andando de carro pela noite paulistana, passo pelas bancas de flores que ficam abertas a noite toda na Doutor Arnaldo, ao lado do cemitério, onde a avó da minha mulher está enterrada. Um comentário sobre amigos: embora tenham suas diferenças de vez em quando, há uma solidariedade de fundo que compreende e ultrapassa essas diferenças, aceitando-as... Isso tudo parece ter pouco a ver com cães, especialmente com os cães de São Paulo, mas não é bem assim."
Estamos diante de um desses textos que vão alçando vôo, e as citações que acabo de fazer já teriam de reproduzir o espaçamento em verso do original, pois é como se o uso do verso fosse aos poucos se construindo, se estruturando no poema, depois de seu começo coloquialíssimo. Toda poesia, afinal, tem de justificar a sua própria existência, tratando de inventá-la no momento mesmo de sua enunciação: sua estrutura emocional determina o pulso, a amplidão do metro adotado. Aos poucos, "Os Cães de São Paulo" se faz como poema. Mas não importa a teoria. Dos cães, passamos à amizade, e este tema surge como um pretexto para se falar de outra coisa ainda mais essencial, a necessidade de comunicação, o ato gratuito que é o de escrever, o de latir.
Traduzidos por Regina Alfarano, os versos de Katz -que há anos vive no Brasil- procuram renovar duas lições, a da larga, democrática, nova-iorquina solidariedade universal de Walt Whtiman, e a da pureza concentrada, irônica, selvagem, da poesia "Pau-Brasil" de Oswald de Andrade. Veja-se este poema sobre as quaresmeiras de São Paulo.
"Nada no mundo é mais difícil do que a candura", declara o poeta na epígrafe. E diz, não se sabe exatamente para quem: "Quero olhar você/ com toda candura,/ olhos vazios, que os palcos/ ecoem canções límpidas".
Esse início lembra a recomendação de Oswald de Andrade no Manifesto Pau-Brasil: "ver com olhos livres". Logo em seguida, as quaresmeiras parecem tomar a palavra: "as danças trazem luz/ às nossas mãos chuvosas./ Nossas mãos não conseguem/ contar as flores/ que começam a se espalhar". O poeta depois se refere à sua mulher: "ela, aqui comigo,/ à frente do mundo/ em um ponto minúsculo e particular/ que se escoa rapidamente/ e nunca se apaga".
Estamos todos à frente do mundo. E não é um voto exagerado de Ano Novo, eu acho, querer que nos traga certa candura no olhar.
coelhofsp@uol.com.br


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