São Paulo, quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

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Livro debate França e EUA na cultura

"Culture in America", de Frederic Martel, discorre sobre métodos americanos de lidar com a arte para estimular discussão francesa

Autor contesta idéia de que cultura organizada pelo Estado seja totalmente boa, e a dominada pelo mercado, necessariamente ruim

ALAN RIDING
DO "NEW YORK TIMES", EM PARIS

Desde a Segunda Guerra, as reações dos franceses à cultura americana e ao seu efeito sobre o mundo se alternam entre a surpresa, o desapontamento e a indignação. O único consolo, para eles, é a convicção de que a cultura francesa é superior a qualquer coisa que Walt Disney e Hollywood possam oferecer.
O que as elites culturais francesas raramente fizeram foi examinar a forma como a cultura séria e a pop funcionam nos EUA. Em vez disso, avalia o francês Frederic Martel, cujo livro sobre esse tema foi lançado recentemente, preferiram se ocultar por trás de um "anti-americanismo ideológico".
Martel, 39, ex-adido cultural francês em Boston, propõe mudar essa visão. Em "Culture in America", contesta a idéia de que a cultura (francesa) organizada pelo governo seja inteiramente boa, e a americana, dominada pelas forças de mercado, seja necessariamente ruim.
"Queria comparar França e EUA, mas não se pode comparar um verdadeiro continente a um pequeno país, uma nação descentralizada a outra com centralização fortíssima", diz.
Assim, o livro trata só do financiamento às artes e à criatividade nos EUA. O que surpreende, dado o medo e o desdém que a cultura americana suscita entre os franceses, é que a abordagem não busca criar polêmica. Martel não defende nem ataca os EUA, apenas descreve os métodos americanos de lidar com a cultura.
"A idéia era determinar como funciona o "contramodelo". Se o objetivo é combater o "imperialismo" americano, é preciso conhecê-lo por dentro. Se queremos modernizar nosso sistema, é útil observar como as coisas podem funcionar sem investimento público maciço."
A resposta da imprensa francesa ao livro sugere espaço para debate. A revista "L'Express" o chamou de "instigante", e a "Le Nouvel Observateur" o comparou a "American Vertigo: Traveling America in the Footsteps of Tocqueville", de Bernard-Henri Levy, ressaltando que Martel trata de fatos, e não de impressões. No "Le Monde", Michel Guerrin e Emmanuel de Roux apontaram a pesquisa como ponto forte. Outro artigo comparava as estatísticas sobre a cultura americana recolhidas por Martel com dados franceses. A conclusão era que, em termos de investimento per capita, os gastos dos dois países com a cultura são semelhantes.

Sem ministério
A primeira metade de "Culture in America" -título que ecoa "A Democracia na América", de Tocqueville- trata de uma questão que intriga franceses: por que os EUA não têm Ministério da Cultura? Uma resposta é que ele pode ser uma ameaça à liberdade artística.
Mas Martel demonstra que Washington tem um bom retrospecto de ativismo cultural: por meio da Works Progress Administration, que financiou o trabalho de dramaturgos, produtores, escritores e artistas, na presidência de Roosevelt; por meio do apoio da Casa Branca a artistas, na era Kennedy; e com a criação do National Endownment for the Arts.
Martel discorre sobre as guerras culturais, começando pelo cancelamento de uma exposição de Robert Mapplethorpe na Corcoran Gallery of Art, em Washington, em 1989, por preocupações quanto ao seu conteúdo, o que levou à realização de uma campanha contra o National Endownment for the Arts no Congresso. O orçamento do fundo de apoio às artes ainda não recuperou os níveis dos anos 80. Estimado em US$ 125 milhões para 2006, é equivalente à quantia que o governo francês dedicou só à Ópera Nacional de Paris neste ano.
O que intriga Martel é que a cultura americana floresça apesar da indiferença do governo. Isso o leva a tratar do papel das fundações sem fins lucrativos, filantropos, empresas patrocinadoras, universidades e organizações comunitárias, que recebem apoio indireto na forma de incentivos fiscais. "Se não há um Ministério da Cultura, a vida cultural, ao contrário, existe em todo o país", escreve.
Ele considera esse um fator positivo. Martel visitou os EUA pela primeira vez em 1999, para promover o livro "The Pink and the Black: Homosexuals in France Since 1986", e conhecia pouco do país ao chegar a Boston, em 2000. Após estudar a história da cultura americana em bibliotecas e arquivos, partiu para uma série de viagens para descobri-la tal qual ela é vivida hoje. "Eu passava todas as minhas férias viajando", disse. "Fiz mais de 700 entrevistas, em 35 Estados.
As universidades americanas foram uma revelação. Na França, elas não têm papel cultural importante. Procurei gays, feministas, latinos, artistas de vanguarda.
Uma das prioridades era visitar comunidades negras, reuniões de associações, espetáculos de teatro de rua, clubes de poesia."

Uniformidade
O mesmo país que abriga tamanha diversidade é acusado de impor uniformidade cultural ao mundo. Em 2005, os EUA votaram contra uma resolução de promoção da diversidade cultural patrocinada pela França, aprovada em assembléia da Unesco. A aparente contradição era justificada de forma simples: Washington se tinha curvado à pressão de Hollywood, para a qual a convenção ameaçava a exportação de filmes e programas de TV.
Martel vê hipocrisia na posição francesa. "Os americanos defendem a diversidade cultural em seu país e a negam no exterior, enquanto a França defende a diversidade cultural no mundo e a recusa em casa". É quanto a isso que ele deseja que a França aprenda com os EUA.
"Me incomoda que nossa elite cultural empregue a ideologia para proteger seus privilégios. Para a elite, nossa cultura define uma idéia do que é França, e a alternativa seria a americanização. Mas ela está só se defendendo das classes populares. Não é possível ter 10% de população imigrante e negar sua cultura." Para promover a cultura de base, propõe poderes decisórios descentralizados. "O governo continuará financiando a arte, mas sem um ministro que defina cultura.
Precisamos de milhares de pessoas trabalhando nessa definição. O poder deveria ter origem nas camadas baixas. É esse o debate que quero estimular."


Tradução PAULO MIGLIACCI


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