São Paulo, Sábado, 29 de Janeiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Retrospectiva dos mil anos é apocalíptica

especial para a Folha


"As datas divisíveis por dez têm, na prática, enorme poder para chamar a atenção e estimular a imaginação", explica Felipe Fernández-Armesto. Assim, do alto de seu posto no Departamento de História Moderna da Universidade de Oxford, o autor lançou uma mirada retrospectiva que consumiu alguns anos de pesquisa e redação até a publicação, em 95, de "Milênio -Uma História de Nossos Últimos Mil Anos".
O volume certamente merece os cuidados de sua edição em português: capa dura, papel chamois em cabalísticas mil páginas, muitas ilustrações e tradução elegante, apesar de chegar à livraria com preço também cabalístico, pouco convidativo (sites na Internet oferecem bons descontos).
"Milênio" está longe da possibilidade de ser adotado como material curricular. Além de um estilo de prosador refinado e psicológico, Fernández-Armesto introduziu outras peculiaridades em seu ambicioso painel. A principal é que ele submete o método histórico a um exercício que se poderia definir como "futurista", "pós-moderno", ou, como prefere o próprio autor, "pontilhista". O resultado desagradou muitos de seus companheiros de disciplina.
Apocalíptico, mas sem nada a ver com a patranha do "fim da história", Fernández-Armesto tentou se distanciar ao máximo da multidão de objetos de sua análise, como se estivesse em outro extremo do tempo e da galáxia. Essa projeção causou dois efeitos distintos: desfocou os temas para os seus contornos mais gerais e, ao mesmo tempo, mesclou itens ao acaso, como na escavação de um sítio com várias camadas arqueológicas. Num autêntico caleidoscópio, aparecem lado a lado os fatos e culturas mais diversos florescidos entre os anos 1000 e 2000, em todos os quadrantes do planeta.
Além disso, Fernández-Armesto relativiza ao máximo a suposta "supremacia ocidental" no período e se afasta de eurocentrismos. A cortesã romancista Murasaki Shikibu, no Japão do final do século 10, aparece mais, por exemplo, do que Luís 14. A crônica sobre Murasaki e os antigos clãs de Heian se engata, sob o pretexto de se comparar requintes civilizados, a uma narrativa sobre o império muçulmano na península ibérica, à mesma época.
O mundo de "Milênio" é como rosebud e sua confusão de bolha de vidro com elementos suspensos no interior. Alinhando-se ao gosto escatológico do final de milênio, inaugura o gênero "história proustiana" em busca do tempo perdido. Pode ser um pesadelo para o historiador preocupado com objetividade, mas faz a delícia do leigo amante da escrita. Cúmulo da heresia acadêmica, o epílogo do livro se dá ao luxo de jogos de futurologia ("Na véspera dos próximos mil anos, sentimos um impulso natural para olhar à frente", pág. 839). Entre as previsões: "A tecnologia (...) será desenvolvida para reverter o crescimento monstruoso que tem dado ao mundo cidades como São Paulo" (em "As Cidades Definharão", págs. 854/855). O autor vaticina, ainda, a dissolução dos grandes Estados: "A unidade do Brasil é uma anomalia que os historiadores nunca explicaram".
Não obstante sua originalidade, nas cinco partes deste volume prevalece afinal um arco equilibrado. Partindo das iniciativas orientais pelos mares da China e do Mediterrâneo, passa-se à hegemonia do Atlântico, até a atual contra-invasão cultural do Pacífico. Fernández-Armesto é provocante, mas não traz a chave que liberta a besta do Apocalipse.
"Milênio" já foi transformado em série televisiva pela CNN. Muito do material dessa série está sumarizado de forma jornalística num superproduzido site na Internet: www.cnn.com/SPECIALS/1999/millennium/ (AM)


Avaliação:     


Livro: Milênio Autor: Felipe Fernández-Armesto Tradução: Antonio Machado Editora: Record (1.000 págs.) Quanto: R$ 100


Texto Anterior: Livro - Lançamentos: O milenarismo e o mito
Próximo Texto: Resenha da Semana - Bernardo Carvalho: Lágrimas de crocodilo
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.