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Retrospectiva dos mil anos é apocalíptica
especial para a Folha
"As datas divisíveis por dez têm, na
prática, enorme poder para chamar a
atenção e estimular
a imaginação", explica Felipe Fernández-Armesto.
Assim, do alto de seu posto no
Departamento de História Moderna da Universidade de Oxford,
o autor lançou uma mirada retrospectiva que consumiu alguns
anos de pesquisa e redação até a
publicação, em 95, de "Milênio
-Uma História de Nossos Últimos
Mil Anos".
O volume certamente merece os
cuidados de sua edição em português: capa dura, papel chamois
em cabalísticas mil páginas, muitas ilustrações e tradução elegante, apesar de chegar à livraria com
preço também cabalístico, pouco
convidativo (sites na Internet oferecem bons descontos).
"Milênio" está longe da possibilidade de ser adotado como material curricular. Além de um estilo
de prosador refinado e psicológico, Fernández-Armesto introduziu outras peculiaridades em seu
ambicioso painel. A principal é
que ele submete o método histórico a um exercício que se poderia
definir como "futurista", "pós-moderno", ou, como prefere o
próprio autor, "pontilhista". O resultado desagradou muitos de
seus companheiros de disciplina.
Apocalíptico, mas sem nada a
ver com a patranha do "fim da
história", Fernández-Armesto
tentou se distanciar ao máximo
da multidão de objetos de sua
análise, como se estivesse em outro extremo do tempo e da galáxia. Essa projeção causou dois
efeitos distintos: desfocou os temas para os seus contornos mais
gerais e, ao mesmo tempo, mesclou itens ao acaso, como na escavação de um sítio com várias camadas arqueológicas. Num autêntico caleidoscópio, aparecem
lado a lado os fatos e culturas mais
diversos florescidos entre os anos
1000 e 2000, em todos os quadrantes do planeta.
Além disso, Fernández-Armesto relativiza ao máximo a suposta
"supremacia ocidental" no período e se afasta de eurocentrismos.
A cortesã romancista Murasaki
Shikibu, no Japão do final do século 10, aparece mais, por exemplo, do que Luís 14. A crônica sobre Murasaki e os antigos clãs de
Heian se engata, sob o pretexto de
se comparar requintes civilizados,
a uma narrativa sobre o império
muçulmano na península ibérica,
à mesma época.
O mundo de "Milênio" é como
rosebud e sua confusão de bolha
de vidro com elementos suspensos no interior. Alinhando-se ao
gosto escatológico do final de milênio, inaugura o gênero "história
proustiana" em busca do tempo
perdido. Pode ser um pesadelo
para o historiador preocupado
com objetividade, mas faz a delícia do leigo amante da escrita. Cúmulo da heresia acadêmica, o epílogo do livro se dá ao luxo de jogos de futurologia ("Na véspera
dos próximos mil anos, sentimos
um impulso natural para olhar à
frente", pág. 839). Entre as previsões: "A tecnologia (...) será desenvolvida para reverter o crescimento monstruoso que tem dado
ao mundo cidades como São Paulo" (em "As Cidades Definharão",
págs. 854/855). O autor vaticina,
ainda, a dissolução dos grandes
Estados: "A unidade do Brasil é
uma anomalia que os historiadores nunca explicaram".
Não obstante sua originalidade,
nas cinco partes deste volume
prevalece afinal um arco equilibrado. Partindo das iniciativas
orientais pelos mares da China e
do Mediterrâneo, passa-se à hegemonia do Atlântico, até a atual
contra-invasão cultural do Pacífico. Fernández-Armesto é provocante, mas não traz a chave que liberta a besta do Apocalipse.
"Milênio" já foi transformado
em série televisiva pela CNN.
Muito do material dessa série está
sumarizado de forma jornalística
num superproduzido site na Internet: www.cnn.com/SPECIALS/1999/millennium/
(AM)
Avaliação:
Livro: Milênio
Autor: Felipe Fernández-Armesto
Tradução: Antonio Machado
Editora: Record (1.000 págs.)
Quanto: R$ 100
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