São Paulo, Sábado, 29 de Janeiro de 2000


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WALTER SALLES
Quem fala "Safado" primeiro ganha o duelo

Safado está lançando um livro. Traduzo: a galeria GB está reunindo a obra completa de um dos mais importantes artistas brasileiros, Franz Krajcberg, num livro que estará disponível em breve.
Conheci Krajcberg 14 anos atrás, ao fazer um documentário sobre seu trabalho, intitulado "O Poeta dos Vestígios". Iniciamos a filmagem em Nova Viçosa, na Bahia, onde Krajcberg construiu seu ateliê e sua casa sobre as árvores.
"Preguiçosos!" Era assim que ele nos saudava todo dia, ao amanhecer. Mais exatamente, às cinco da manhã. Para Krajcberg, qualquer pessoa que não está de pé às quatro e meia é, automaticamente, preguiçosa.
Com o tempo e a consolidação da nossa amizade, acabei respondendo à altura. "Preguiçoso!", vinha ele de um lado. "Safado!", respondia. E Krajcberg desandava a rir, uma gargalhada de criança, lúdica e encantadora.
Alguns anos depois, acabamos unificando o brado de guerra. Agora, quem profere primeiro o "Safado" ganha o duelo. A cena se repete no telefone ou em lugares públicos, como restaurantes, para espanto dos demais clientes.
Folheio o livro. São dois volumes, intitulados "Natura" e "A Revolta". Reencontro o mesmo impacto que tive ao ver a sua obra pela primeira vez. Lá estão as esculturas feitas de madeira calcinada, a quem Krajcberg confere uma segunda vida. Lá estão os conjuntos deslumbrantes, como as "gordas", esculturas zebradas cujo poder evocativo é dificilmente descritível.
Não é o Brasil da Embratur que está aqui retratado. É aquele que nos dói, o Brasil das queimadas, o país das cercas. Não há tentativa de contemporização naquilo que é mostrado. "Quero que minha obra grite, não que ela seja bonita", diz ele.
Não deixa de ser uma confissão de amor ao Brasil. Denuncia-se aquilo que se quer salvar. Penso no quanto são necessários aqueles artistas que se tornaram brasileiros por opção e não por obrigação, como Frans Krajcberg ou Hector Babenco. Não estão interessados em nos oferecer uma visão adocicada ou conciliadora do país. Nas formas retorcidas de Krajcberg ou nas imagens instigantes de Babenco, há o desvendamento de um país violento, em convulsão, que queima os seus Galdinos e fermenta os seus Pixotes.
Há também um exemplo salutar de resistência, que Krajcberg aprendeu a exercer desde a infância na Polônia. Foi o único de sua família a sobreviver ao nazismo. Sua mãe, dirigente do partido comunista polonês, foi uma das primeiras mulheres a serem presas e assassinadas pela Gestapo.
Quando optou por emigrar para o Brasil, em 1948, Krajcberg não sabia falar a língua nem tinha dinheiro para pagar uma noite de hotel. No início, dormiu na rua. Depois, descobriu o vigor da natureza brasileira e se inspirou nela para realizar uma obra radicalmente original.
Graças a Krajcberg, são os próprios restos de uma cultura predatória que renascem, de forma visceral. É uma prática generosa, reveladora de que a capacidade de invenção do homem pode, às vezes, ser maior do que sua estupidez.
"Perdi tudo, menos a capacidade de me indignar", diz ele com a voz paradoxalmente doce. Talvez seja essa capacidade de indignação que explica o fascínio que sua obra exerce nos jovens de diversos cantos do mundo. Em Curitiba, 900 mil pessoas assistiram à mostra "A Revolta", um número que muitos filmes não atingem na bilheteria. Duas recentes exposições em Paris, no Museu de La Villette e na Fondation Cartier, também foram sucesso de público.
Alguns meses atrás, presenciei um episódio que ilustra bem os princípios que movem Frans Krajcberg. As obras que ele havia enviado à exposição de Paris foram retidas no retorno ao país pela alfândega do porto de Santos.
Uma situação kafkiana, representativa da nossa cultura extrativista: as esculturas podiam sair, mas não voltar ao Brasil. Foram cobrados quase R$ 80 mil de taxas e custos de armazenagem para retirar as esculturas. "Prefiro perder as obras a ser extorquido", respondeu Krajcberg.
Seis meses depois, as obras continuavam presas, e Krajcberg foi avisado de que elas iam ser queimadas. Os amigos mais próximos chegaram a pensar numa cotização para evitar o pior. Krajcberg descobriu a trama e só faltou estrangular os conspiradores. "Não é correto, ninguém vai pagar nada". Na ocasião, brigou com vários amigos, eu inclusive. "Vocês estão anestesiados ou o quê?", perguntava com razão.
Esqueceu os quase 80 anos de idade e partiu para o ataque. Denunciou o absurdo nos jornais. E ainda lançou um manifesto: "Este é um país pobre, miserável, que continua queimando os seus bens naturais e culturais".
As obras foram finalmente liberadas, sem pagar um tostão. "Tá vendo?", diz Krajcberg, depois de fazer as pazes, o sorriso de criança de volta nos lábios. "Se você não resiste e não defende o seu direito, você perde a liberdade."
Safado estava certo, mais uma vez. Os dois volumes que agora resumem sua obra são uma fonte de inspiração para muita gente, a começar pelos preguiçosos.


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