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ARTIGO
As três mortes de Cícero Dias
PAULO HERKENHOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA
Com a morte do longevo Cícero Dias encerra-se o capítulo
da arte modernista brasileira. O
jovem Cícero foi um onírico (ou
um proto-surrealista sem conhecer a psicanálise).
Seus desenhos, marcados por
um frescor espontâneo nos anos
20 e 30, eram sonhos eróticos de
um menino de engenho e registro
de um tempo suspenso. É coerente que tenha ilustrado a primeira
edição de "Casa Grande & Senzala" de Gilberto Freyre, marco das
ciências sociais no Brasil. Eram
dois sociólogos que evitavam a
sociologia do conflito.
O audacioso desenho, hoje reduzido a 1,5 por 12,5 metros, "Eu
Vi o Mundo... Ele Começava no
Recife", que participou do Salão
Revolucionário (1931), é a obra-prima de Cícero. É sua janela para
o mundo, no modo como Alberti
via o quadro no Renascimento.
O artista deambulava entre a
magia do Rio e o atavismo nordestino. Expressão de uma sociedade sem mobilidade social, os
seres em seus desenhos só escapavam de um destino através da
imaginação do artista, embora alguns tentassem os caminhos de
"Vidas Secas" (Graciliano Ramos).
Seu encanto estava em ser um
chagalliano de traço tosco e sensual. Cícero negava a influência de
Chagall. Deve ter esquecido das
gravuras do russo na casa de seu
amigo Mário de Andrade. Preferia contar vantagens no arraial
brasileiro, impressionando nosso
provincianismo com relatos exagerados da intimidade com Picasso, cujo telefone esteve em seu nome.
Geometria
O artista menino morre quando
viaja para Paris. A figura humana
em sua arte era incompatível com
a pintura. Cícero não compreendeu que era um sofrível pintor figurativo, salvo em raras telas.
Em meados dos anos 40, ressuscita ao adotar a geometria abstrata. É o pioneiro de fato. Queima a
etapa vivida por aqui nessa época
de negociação entre figuração e
geometrização. A paleta evocava
as cores tórridas. Conduzia nosso
modernismo a um ponto radical.
Integrou-se genuinamente no
meio francês, atuando ao lado de
Jean Arp (1887-1966) ou Auguste
Herbin (1882-1960).
Participa das hesitações da abstração na Europa, entre o caráter
composicional da forma e a concretude do espaço.
Foi um pioneiro frente aos concretistas. Logo sua pintura denota
a falta de conceitos, colocando-o
em desvantagem frente os artistas
de SP e RJ. Pouco depois, morreria o geômetra espontâneo
Agora, com sua morte, encerra-se um capítulo singular da arte
brasileira.
Paulo Herkenhoff é crítico de arte e foi
curador da 24ª Bienal de São Paulo
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