São Paulo, quarta, 29 de janeiro de 1997.

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ARTIGO
Escritor tinha a ética na alma

EDUARDO PORTELLA
especial para a Folha

Com Antonio Callado desaparece um dos últimos escritores verticais da nossa contemporaneidade. O percurso da brasilidade, dividida perigosamente entre três raças nem sempre harmonizadas, ele soube compreender nos seus mínimos gestos.
Além de jornalista provado e comprovado, ele foi capaz de desenvolver uma narrativa em que vários elementos se cruzam.
Inicialmente ressalta o quadro religioso, e ``Assunção de Salviano'' e ``Madona de Cedro'' cortam a consciência cristã, por dentro. O vaivém de uma cultura espiritual ambiciosa parecia o tempo todo desafiado pelas perplexidades do homem moderno.
Nesse primeiro momento, Callado traduzia a vontade de transformação de uma sociedade rural fragilmente urbanizada.
Em seguida, o teatro, a opção da solidariedade e a denúncia do conjunto de injustiças que foi compondo o tecido social, sem muitas alternativas.
Vários pontos dessa jornada se destacam. ``Quarup'' é ainda o sentimento cristão, mas todo pontilhado pelas decisões da cotidianidade. A ``Expedição Montaigne'' é igualmente a interpelação do Brasil, a recusa de um fundo falso e de padrões metropolitanos discutíveis.
``Reflexos do Baile'' é o trabalho livre da linguagem. O escritor se dedica a este paciente, desconcertante e, não raro, revelador, esforço de transformação da língua em linguagem, mas uma linguagem sem lamúria e sem resignação, sempre interrogativa e inconformada.
Pode parecer que, entre essa vontade de invenção verbal e a fidelidade quase fotográfica das reportagens políticas, houvesse uma distância muito grande.
Não é assim. O escritor-cidadão militante, não de uma ideologia particular, porém da condição humana, é sempre o mesmo. Quem empurra o escritor para o exercício político é a ética.
Callado é político porque é ético. É ele que as pessoas, os cidadãos que alcançaram o discernimento crítico, deploram agora. Deploram o escritor que partiu e o exemplo de exercício cotidiano da dignidade sem rodeios e sem concessões.


Eduardo Portella, 64, ensaísta, é presidente da Fundação Biblioteca Nacional.

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