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ARTIGO
Escritor tinha a ética na alma
EDUARDO PORTELLA
especial para a Folha
Com Antonio Callado desaparece um dos últimos escritores verticais da nossa contemporaneidade.
O percurso da brasilidade, dividida perigosamente entre três raças
nem sempre harmonizadas, ele
soube compreender nos seus mínimos gestos.
Além de jornalista provado e
comprovado, ele foi capaz de desenvolver uma narrativa em que
vários elementos se cruzam.
Inicialmente ressalta o quadro
religioso, e ``Assunção de Salviano'' e ``Madona de Cedro'' cortam
a consciência cristã, por dentro. O
vaivém de uma cultura espiritual
ambiciosa parecia o tempo todo
desafiado pelas perplexidades do
homem moderno.
Nesse primeiro momento, Callado traduzia a vontade de transformação de uma sociedade rural fragilmente urbanizada.
Em seguida, o teatro, a opção da
solidariedade e a denúncia do conjunto de injustiças que foi compondo o tecido social, sem muitas
alternativas.
Vários pontos dessa jornada se
destacam. ``Quarup'' é ainda o
sentimento cristão, mas todo pontilhado pelas decisões da cotidianidade. A ``Expedição Montaigne'' é
igualmente a interpelação do Brasil, a recusa de um fundo falso e de
padrões metropolitanos discutíveis.
``Reflexos do Baile'' é o trabalho
livre da linguagem. O escritor se
dedica a este paciente, desconcertante e, não raro, revelador, esforço de transformação da língua em
linguagem, mas uma linguagem
sem lamúria e sem resignação,
sempre interrogativa e inconformada.
Pode parecer que, entre essa
vontade de invenção verbal e a fidelidade quase fotográfica das reportagens políticas, houvesse uma
distância muito grande.
Não é assim. O escritor-cidadão
militante, não de uma ideologia
particular, porém da condição humana, é sempre o mesmo. Quem
empurra o escritor para o exercício político é a ética.
Callado é político porque é ético.
É ele que as pessoas, os cidadãos
que alcançaram o discernimento
crítico, deploram agora. Deploram o escritor que partiu e o exemplo de exercício cotidiano da dignidade sem rodeios e sem concessões.
Eduardo Portella, 64, ensaísta, é presidente da
Fundação Biblioteca Nacional.
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