|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CINEMA/ESTRÉIA
Estréia hoje "A Comédia da Inocência", filme de 2000 do cineasta chileno Raoul Ruiz
O disfarce da ingenuidade
Divulgação
|
O garoto Camille, que aos 9 anos é consumido pela idéia de não ser filho de sua mãe |
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Radicado na França desde que a
ditadura se instalou no Chile, em
73, o cineasta Raoul Ruiz é um
aparente paradoxo: realiza mais
de um filme por ano e, no entanto,
mantém-se à distância do modelo
industrial de cinema. "O cinema
não é um discurso, mas um ato vital", define, oferecendo a senha
que explica o volume e o conteúdo de sua produção.
Depois de "A Comédia da Inocência" (2000), que estréia hoje no
Brasil, Ruiz já concluiu dois outros títulos ("Les Âmes Fortes" e
"Combat d'Amour en Songe") e
monta "Cofralantes", um filme de
15 horas (dividido em dez "capítulos" de uma hora e meia cada
um) que faz "um balanço" de sua
relação com o Chile.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Paris, Ruiz falou sobre
sua obra e explicou como faz de
autores "intocáveis" como Proust
("O Tempo Redescoberto") um
"álibi" para produzir o cinema
que lhe interessa.
Folha - "O Tempo Redescoberto",
seu filme anterior exibido no Brasil, é uma adaptação de Proust, autor considerado infilmável. "A Comédia da Inocência" parte de um
texto de Massimo Bontempelli.
Quais são seus critérios para decidir adaptar uma obra literária?
Raoul Ruiz - No caso de Proust,
era um projeto que eu tinha havia
muito tempo. Meu modo de filmar combina com a maneira de
ele dizer as coisas. Uso os escritores como uma espécie de álibi para fazer o cinema de que gosto. Eu
me protejo em suas obras, porque
se apresentar meus próprios roteiros não consigo realizá-los.
Com "A Comédia da Inocência"
foi diferente. Peguei o argumento
como ponto de partida e escrevi o
roteiro como um "huis clos", ambientado no inverno, em Paris.
Depois desse filme, fiz "Les
Âmes Fortes" (As Almas Fortes)
que é também uma adaptação, de
Jean Giono, e adaptei um texto cabalístico do Renascimento,
"Combat d'Amour en Songe"
(Combate de Amor em Sonho).
Folha - Como se explica que um
dos mais renomados cineastas em
atividade necessite de "álibis" para filmar?
Ruiz - Quanto mais somos vistos, mais nos tornamos alvo de
produtores, que são pessoas muito complicadas. Pelo menos na
Europa, ainda existem escritores
intocáveis. Se os adaptamos, não
se pode exigir que os tornemos
comerciais, porque isso seria traí-los. É o caso de Proust. Não poderiam me impor uma história de
amor ou de ação ali. Com esses
autores posso fugir da ficção narrativa em três atos à moda americana, que odeio, mas que é o modo maior de fazer cinema hoje.
Folha - Não existe também uma
tendência de novos diretores de recusa a uma atitude intelectual?
Ruiz - Percebo realmente uma
tendência, mas de cunho estético.
Essa estrutura em três atos é o disfarce de um sistema ideológico ultracapitalista, neoliberal. Esse é
um projeto que não concerne
apenas ao cinema, mas à totalidade da vida social. Trata-se de um
modelo político injusto e neocolonial. No cinema, essa estrutura
tem um efeito semelhante ao da
droga, faz com que todos os filmes sejam mais ou menos os
mesmos e diante deles sintamos o
mesmo tipo de emoção.
Como o cigarro, o cinema tem
elementos viciantes. O cinema
que eu procuro fazer -e não sou
o único- é aquele em que vemos
cada filme dentro de seu mundo e
de sua complexidade. Isso não
quer dizer que os filmes sejam
mais difíceis, mas que cada vez temos que afrontá-los como afrontamos um ser humano que acabamos de conhecer. Quando você
conhece alguém, não se pergunta:
"Onde devo atacá-lo ou como
posso matá-lo". Você procura conhecer sua maneira de ser, sua
cultura, procura ter simpatia por
essa pessoa. Os filmes também
são complexos, atraentes, bonitos
ou feios. Existe um coeficiente de
humanidade nos filmes.
Folha - Quem são seus companheiros nessa proposta de cinema?
Ruiz - [Robert" Bresson, [Jean-Luc] Godard, [Peter] Greenaway,
[Jacques] Rivette, uma centena de
pessoas. Espero que em pouco
tempo haja algum latino-americano, porque gostaria de seguir a
via latina. Há poucos jovens, por
enquanto, mas isso virá.
Folha - Em sua fase mais acentuadamente política ("Três Tristes Tigres", "Diálogo de Exilados") o sr.
foi apontado como um observador
capaz de antever cenários.
Ruiz - Não concordo. O cinema
não é um discurso, mas um ato vital. Ao serem mostradas é que as
coisas se tornam evidentes, porque as vemos de fora. "Diálogo de
Exilados" é um filme no limite do
documentário, feito com pessoas
que acabavam de chegar do Chile
e falavam de sua experiência. Se
tivéssemos feito um livro em vez
de um filme, ele seria muito confuso. Foi o ato de filmar que deixou as coisas claras.
Texto Anterior: Programação de TV Próximo Texto: Crítica: Da loucura ao sobrenatural Índice
|