São Paulo, sexta-feira, 29 de março de 2002

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CINEMA/ESTRÉIA

Estréia hoje "A Comédia da Inocência", filme de 2000 do cineasta chileno Raoul Ruiz

O disfarce da ingenuidade

Divulgação
O garoto Camille, que aos 9 anos é consumido pela idéia de não ser filho de sua mãe


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Radicado na França desde que a ditadura se instalou no Chile, em 73, o cineasta Raoul Ruiz é um aparente paradoxo: realiza mais de um filme por ano e, no entanto, mantém-se à distância do modelo industrial de cinema. "O cinema não é um discurso, mas um ato vital", define, oferecendo a senha que explica o volume e o conteúdo de sua produção.
Depois de "A Comédia da Inocência" (2000), que estréia hoje no Brasil, Ruiz já concluiu dois outros títulos ("Les Âmes Fortes" e "Combat d'Amour en Songe") e monta "Cofralantes", um filme de 15 horas (dividido em dez "capítulos" de uma hora e meia cada um) que faz "um balanço" de sua relação com o Chile.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Paris, Ruiz falou sobre sua obra e explicou como faz de autores "intocáveis" como Proust ("O Tempo Redescoberto") um "álibi" para produzir o cinema que lhe interessa.

Folha - "O Tempo Redescoberto", seu filme anterior exibido no Brasil, é uma adaptação de Proust, autor considerado infilmável. "A Comédia da Inocência" parte de um texto de Massimo Bontempelli. Quais são seus critérios para decidir adaptar uma obra literária?
Raoul Ruiz -
No caso de Proust, era um projeto que eu tinha havia muito tempo. Meu modo de filmar combina com a maneira de ele dizer as coisas. Uso os escritores como uma espécie de álibi para fazer o cinema de que gosto. Eu me protejo em suas obras, porque se apresentar meus próprios roteiros não consigo realizá-los. Com "A Comédia da Inocência" foi diferente. Peguei o argumento como ponto de partida e escrevi o roteiro como um "huis clos", ambientado no inverno, em Paris.
Depois desse filme, fiz "Les Âmes Fortes" (As Almas Fortes) que é também uma adaptação, de Jean Giono, e adaptei um texto cabalístico do Renascimento, "Combat d'Amour en Songe" (Combate de Amor em Sonho).

Folha - Como se explica que um dos mais renomados cineastas em atividade necessite de "álibis" para filmar?
Ruiz -
Quanto mais somos vistos, mais nos tornamos alvo de produtores, que são pessoas muito complicadas. Pelo menos na Europa, ainda existem escritores intocáveis. Se os adaptamos, não se pode exigir que os tornemos comerciais, porque isso seria traí-los. É o caso de Proust. Não poderiam me impor uma história de amor ou de ação ali. Com esses autores posso fugir da ficção narrativa em três atos à moda americana, que odeio, mas que é o modo maior de fazer cinema hoje.

Folha - Não existe também uma tendência de novos diretores de recusa a uma atitude intelectual?
Ruiz -
Percebo realmente uma tendência, mas de cunho estético. Essa estrutura em três atos é o disfarce de um sistema ideológico ultracapitalista, neoliberal. Esse é um projeto que não concerne apenas ao cinema, mas à totalidade da vida social. Trata-se de um modelo político injusto e neocolonial. No cinema, essa estrutura tem um efeito semelhante ao da droga, faz com que todos os filmes sejam mais ou menos os mesmos e diante deles sintamos o mesmo tipo de emoção.
Como o cigarro, o cinema tem elementos viciantes. O cinema que eu procuro fazer -e não sou o único- é aquele em que vemos cada filme dentro de seu mundo e de sua complexidade. Isso não quer dizer que os filmes sejam mais difíceis, mas que cada vez temos que afrontá-los como afrontamos um ser humano que acabamos de conhecer. Quando você conhece alguém, não se pergunta: "Onde devo atacá-lo ou como posso matá-lo". Você procura conhecer sua maneira de ser, sua cultura, procura ter simpatia por essa pessoa. Os filmes também são complexos, atraentes, bonitos ou feios. Existe um coeficiente de humanidade nos filmes.

Folha - Quem são seus companheiros nessa proposta de cinema?
Ruiz -
[Robert" Bresson, [Jean-Luc] Godard, [Peter] Greenaway, [Jacques] Rivette, uma centena de pessoas. Espero que em pouco tempo haja algum latino-americano, porque gostaria de seguir a via latina. Há poucos jovens, por enquanto, mas isso virá.

Folha - Em sua fase mais acentuadamente política ("Três Tristes Tigres", "Diálogo de Exilados") o sr. foi apontado como um observador capaz de antever cenários.
Ruiz -
Não concordo. O cinema não é um discurso, mas um ato vital. Ao serem mostradas é que as coisas se tornam evidentes, porque as vemos de fora. "Diálogo de Exilados" é um filme no limite do documentário, feito com pessoas que acabavam de chegar do Chile e falavam de sua experiência. Se tivéssemos feito um livro em vez de um filme, ele seria muito confuso. Foi o ato de filmar que deixou as coisas claras.


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