São Paulo, sexta-feira, 29 de março de 2002

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CRÍTICA

Da loucura ao sobrenatural

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

No dia do seu nono aniversário, o menino Camille decide: sua mãe não é sua mãe; é preciso ir em busca da mãe verdadeira. Como ele chegou a essa conclusão? Quem é o menino que por vezes se vê através da janela e desaparece em seguida? Quem é Isabella, a mulher de quem Camille acredita ser filho?
Todas essas perguntas estão sugeridas ao longo de "A Comédia da Inocência". Não será demais perguntar a que remete com mais intensidade o filme de Raoul Ruiz: sobrenatural, parapsicologia, mistério, loucura?
Estamos um pouco em todos esses registros. A cada passo nossa curiosidade é indagar sobre o que, afinal, estamos vendo. A convicção de Camille é tão grande que podemos acreditar, em dado momento, numa troca de filhos na maternidade.
Mais adiante, pensamos que Isabella é apenas uma maluca que botou na cabeça do menino uma história fabulosa. Afinal, ela teve um filho -Paul- nascido no mesmo dia e ano que Camille e morto dois anos antes.
Mas essa circunstância nos joga apenas diante de outra hipótese: seria esse um caso de reencarnação? Ou ainda, será que o fantasma de Paul induz Camille a acreditar que é Paul?
Por fim, a tensão entre as duas mães -a verdadeira e a falsa (mas qual é verdadeira, e qual é falsa?)- nos empurra fatalmente ao julgamento bíblico de Salomão. No mais, Ariane (Isabelle Huppert), a primeira mãe, tem em sua luxuosa casa um quadro representando o julgamento.
Em poucas palavras, Raoul Ruiz nos convoca a partilhar a natureza do mistério, gênero de que o mestre supremo continua sendo Edgar Allan Poe.
E o principal interesse de "A Comédia da Inocência" consiste justamente em não fingir que é um mistério de primeira geração. O filme trabalha com toda a experiência que o espectador tem do gênero e consegue empurrar sua curiosidade de um lado para outro. Ora parece mais claro que estamos no universo do sobrenatural, ora abandonamos essa hipótese para investir na idéia de psicose. E assim por diante.
Ruiz constrói uma atmosfera forte, a partir daquilo que os personagens têm de vago. Não sabemos como Camille chega à conclusão de que Isabella é sua verdadeira mãe. Mas veremos que ele sabe com precisão dizer qual é o seu endereço. E, quando chega à casa de Isabella, comporta-se como se estivesse voltando a um lugar muito familiar.
Se Ruiz nos carrega habilmente por todos esses caminhos obscuros, que ora se bifurcam ora se fecham, na verdade parece estar aqui em busca da natureza do mistério. Ele pode estar em todos esses lugares -no além, na medicina etc.-, mas sua hipótese principal é que se situa sobretudo.
O mistério é uma articulação das coisas, a conjunção entre o que conhecemos e o que ignoramos, o que desejamos saber e aquilo que secretamente desejamos que aconteça.
Ruiz faz uma bela demonstração dessas idéias, na qual talvez incomode o caráter abstrato dos personagens, que existem para servir a essas idéias e a essa demonstração.



A Comédia da Inocência
Comédie de l'Innocence

   
Direção: Raoul Ruiz
Produção: França, 2000
Com: Isabelle Huppert, Jeanne Balibar, Charles Berling
Quando: a partir de hoje no Cineclube DirecTV, Sala UOL e Top Cine





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