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CRÍTICA
Da loucura ao sobrenatural
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
No dia do seu nono aniversário, o menino Camille decide: sua mãe não é sua mãe; é preciso ir em busca da mãe verdadeira. Como ele chegou a essa conclusão? Quem é o menino que por
vezes se vê através da janela e desaparece em seguida? Quem é Isabella, a mulher de quem Camille
acredita ser filho?
Todas essas perguntas estão sugeridas ao longo de "A Comédia
da Inocência". Não será demais
perguntar a que remete com mais
intensidade o filme de Raoul Ruiz:
sobrenatural, parapsicologia,
mistério, loucura?
Estamos um pouco em todos
esses registros. A cada passo nossa curiosidade é indagar sobre o
que, afinal, estamos vendo. A convicção de Camille é tão grande
que podemos acreditar, em dado
momento, numa troca de filhos
na maternidade.
Mais adiante, pensamos que
Isabella é apenas uma maluca que
botou na cabeça do menino uma
história fabulosa. Afinal, ela teve
um filho -Paul- nascido no
mesmo dia e ano que Camille e
morto dois anos antes.
Mas essa circunstância nos joga
apenas diante de outra hipótese:
seria esse um caso de reencarnação? Ou ainda, será que o fantasma de Paul induz Camille a acreditar que é Paul?
Por fim, a tensão entre as duas
mães -a verdadeira e a falsa
(mas qual é verdadeira, e qual é
falsa?)- nos empurra fatalmente
ao julgamento bíblico de Salomão. No mais, Ariane (Isabelle
Huppert), a primeira mãe, tem
em sua luxuosa casa um quadro
representando o julgamento.
Em poucas palavras, Raoul Ruiz
nos convoca a partilhar a natureza do mistério, gênero de que o
mestre supremo continua sendo
Edgar Allan Poe.
E o principal interesse de "A Comédia da Inocência" consiste justamente em não fingir que é um
mistério de primeira geração. O
filme trabalha com toda a experiência que o espectador tem do
gênero e consegue empurrar sua
curiosidade de um lado para outro. Ora parece mais claro que estamos no universo do sobrenatural, ora abandonamos essa hipótese para investir na idéia de psicose. E assim por diante.
Ruiz constrói uma atmosfera
forte, a partir daquilo que os personagens têm de vago. Não sabemos como Camille chega à conclusão de que Isabella é sua verdadeira mãe. Mas veremos que ele
sabe com precisão dizer qual é o
seu endereço. E, quando chega à
casa de Isabella, comporta-se como se estivesse voltando a um lugar muito familiar.
Se Ruiz nos carrega habilmente
por todos esses caminhos obscuros, que ora se bifurcam ora se fecham, na verdade parece estar
aqui em busca da natureza do
mistério. Ele pode estar em todos
esses lugares -no além, na medicina etc.-, mas sua hipótese
principal é que se situa sobretudo.
O mistério é uma articulação
das coisas, a conjunção entre o
que conhecemos e o que ignoramos, o que desejamos saber e
aquilo que secretamente desejamos que aconteça.
Ruiz faz uma bela demonstração dessas idéias, na qual talvez
incomode o caráter abstrato dos
personagens, que existem para
servir a essas idéias e a essa demonstração.
A Comédia da Inocência
Comédie de l'Innocence
Direção: Raoul Ruiz
Produção: França, 2000
Com: Isabelle Huppert, Jeanne Balibar,
Charles Berling
Quando: a partir de hoje no Cineclube
DirecTV, Sala UOL e Top Cine
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