São Paulo, sexta-feira, 29 de março de 2002

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"A NOIVA ESTAVA DE PRETO"

Filme ecoa Hitchcock, mas fica aquém das expectativas

TIAGO DA MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Se a nouvelle vague francesa é considerada uma geração de "cinefilhos" é porque teve, mais do que qualquer outra, a consciência histórica necessária para se ver numa filiação e escolher a sua própria genealogia na história do cinema.
Para os jovens cinéfilos da Cinemateca de Henri Langlois, não se tratava apenas de seguir a norma de uma geração que trocava, em peso, os conselhos paternos pelos atos dos heróis das telas. Aqueles precoces especialistas estabeleceram verdadeiros cânones ao se projetarem numa nova família, a do "realismo espiritual" do cinema, gesto que ganhou, na história pessoal de François Truffaut, conotações psicológicas.
Criança bastarda, enjeitada pela família e precocemente emancipada, como os mais clássicos personagens bastardos da literatura francesa, Truffaut, mais do que qualquer outro confrade da revista "Cahiers du Cinéma", fez da "política dos autores", o movimento crítico que alçou a geração nouvelle vague ao poder, uma "política do pai". Jean Renoir, Roberto Rossellini, Max Ophüls, Alfred Hitchcock, a cada entrevista que o jovem Truffaut fazia para a revista, uma nova conquista, uma nova adoção. Como não invejar a sua "cinefamília"?
Foi em plena "fase Hitchcock" que Truffaut realizou "A Noiva estava de Preto" (1967). A única obra-prima dessa fase, iniciada por "Um só Pecado" (1964), seria o livro "Hitchcock/Truffaut - Entrevistas", editado pela primeira vez em 1966 e ampliado mais tarde. Sempre em contato com o mestre nesse período, Truffaut realizou filmes que são os de um discípulo esforçado e escrupuloso, mas limitado.
O clima hitchcockiano de "A Noiva Estava de Preto" vem, sobretudo, da trilha de Bernard Herrmann, o grande comparsa de Hitchcock, cheia de acordes de "Um Corpo que Cai".
Mas, ao reduzir o seu enredo à ação obsessiva de uma matadora sem culpas, à vingança em cinco atos de sua heroína, uma viúva negra (Jeanne Moreau) decidida a matar os responsáveis pela morte do marido, Truffaut revela-se muito aquém de Hitchcock.
Enquanto nas grandes obras do mestre a tendência monológica do cinema clássico é transcendida em favor de uma lógica de relações, de um universo mais dialógico em que a moeda de troca é sempre a culpa, na obra do discípulo retornamos à monologia sem nuances do thriller clássico.
Outro problema é a fotografia. Durante as filmagens, Truffaut se desentendeu com Raoul Coutard, o célebre diretor de fotografia de Godard, cujo vício (godardiano) de usar pouca luz não agradava ao cineasta. Este, no entanto, acabou arrependido: o excesso de luz e sol da fotografia prejudicou o clima de mistério da história. Ainda mais se considerarmos que se trata da adaptação de um romance de William Irish, o mais sombrio dos escritores da série "noire", a célebre série de livros policiais que o jovem Truffaut leu, por iniciativa do "pai de ocasião" Jean Genet, quando estava preso.
O que resta do filme é a obsessão de Truffaut por Jeanne Moreau, a verdadeira viúva negra da nouvelle vague. É à obsessão do cineasta pela atriz e amante que devemos atribuir a limitada, mas sedutora, monomania de "A Noiva Estava de Preto".



A Noiva Estava de Preto
La Mariée Était en Noir

   
Direção: François Truffaut
Produção: França, 1967
Com: Jeanne Moreau, Michel Bouquet, Jean-Claude Brialy
Quando: a partir de hoje no Top Cine




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