São Paulo, sexta-feira, 29 de março de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Perúgia, cidade verde do passado medieval

Como ponto de referência, Perúgia é a capital da Úmbria, tal como Florença é a capital da Toscana e Milão, a capital da Lombardia. Além da referência, a cidade é, em miniatura, o que a própria Itália conseguiu ser na história e na geografia: um sítio destacado na geografia e na memória do homem. A começar do fato de que é uma cidade anterior à Itália -o que não é vantagem- e anterior aos romanos. Na verdade, é uma vila etrusca, berço não apenas de Roma, mas daquilo que, generosamente, pode-se chamar de cultura latina.
Os resíduos desse passado estão espalhados pela cidade moderna e agradável -e visitar Perúgia é conhecer uma das regiões mais peculiares da Itália: a Úmbria. Portas e poços, lápides e pedaços de estátuas, ali estão os vestígios daquele povo meio misterioso e universal a partir do qual foi gerado, em muitos sentidos, o próprio Ocidente.
Mas Perúgia é muito mais do que uma aula de história. É, apesar de um pouco contra a vontade, uma cidade romana, dominada pelos papas, que fizeram da Úmbria uma espécie de cinto de segurança de Roma, terra de ninguém entre o Lácio e a Toscana, região mediterrânea num país cercado de água por três lados. Cidade típica do medievo, ao mesmo tempo ali estão as fachadas da Renascença e do tardo barroco, até mesmo do "rissorgimento" em sua praça central.
Em muitos outros lugares há destroços da Antiguidade, cintados por fatigadas muralhas: Jerusalém, Cairo, Estocolmo, Gotland, Atenas, Lucca. Formam um chão isolado, proibido ao tráfico e à modernidade. Não é o caso de Roma e de Perúgia, as únicas cidades em que o centro histórico se integra na vida cotidiana.
As vielas medievais ali estão, sombreadas e cheirando a pão -não se sabe por que a Idade Média que nos restou ainda cheira a pão, a um pão bastante problemático para a época. É descer a praça principal da cidade, cruzar a Maestà delle Volte e esbarrar com enormes muralhas de pedra, as mais altas da Europa -com exceção das catedrais também góticas.
Não era arbitrário o tamanho dos edifícios: a altura revelava grandeza e poder -atributos que não faltaram à Perúgia medieval. Preocupados com a independência dos peruginos, tanto na política como nas artes, os papas resolveram dominá-la -e o fizeram com a mão pesada do poder centralizador. Paulo 3º cercou a cidade e praticamente a destruiu no estilo da época: não deixou pedra sobre pedra.
Dominada a rebelde, o mesmo papa mandou edificar a fantástica muralha que ainda hoje leva o seu nome, a Rocca Paolina, uma espécie de fortaleza que circunda o ponto mais alto da cidade -como todas as vilas medievais, Perúgia domina o topo de uma colina, ocupando os cimos de uma sucessão de pequenos montes. Para o forasteiro, que chega de Roma ou de Florença, ainda hoje ela se alça com elegância e de suas janelas se descortina uma das paisagens mais encantadoras: o vale do Tibre, o mesmo Tibre que, 180 quilômetros ao sul, corta em duas a cidade dos césares.
Vale imenso e sagrado, umbroso e verde, vale dos santos que mudaram a face do homem: não muito distante dali, o forasteiro que olhar para o lado verá a silhueta de Assis -também pedra e encanto. O ar é azul na Úmbria, azul e sereno, as aves que ali gorjeiam são as mesmas que pousaram no ombro de Francisco também de Assis. Se olhar para outro lado, verá Nórcia, onde nasceu outro santo, Bento, que daria ao homem a alternativa da solidão.
É a terra de Pietro Vannucci, que passou para os museus como o Perugino. É dele a principal estátua da cidade, maior e mais imponente do que a própria estátua equestre de Vittório Emannuelle 2º -decoração mais ou menos obrigatória da Itália unificada no "ottocento".
Perugino foi mestre de Rafael -a cidade ainda conserva os passos do jovem que dali partiu para conquistar Roma e Júlio 2º. Os toscanos não apreciam demasiadamente a pintura de Perugino, a rivalidade paroquial contaminou também os grandes momentos da história e do homem. Mas Perugino é presença tão forte e compacta em Perúgia quanto Bernini em Roma, Bruneleschi em Florença, Guardi em Veneza. É um pintor másculo e, nesse sentido, é bem um artista da Renascença.
Como toda cidade beirando os 300 mil habitantes, Perúgia conserva a forma simples e bonita de viver e conviver. No Palazzo dei Priori, admira-se não apenas a extraordinária curva de pedra que parece ter se amoldado ao tempo. Ali estão os tesouros do Collegio del Cambio, a Galeria Nazionale dell" Umbria, um dos museus mais bem organizados e lógicos do mundo. E a imensa sala onde se realizam concertos de boa qualidade e sustância.
E há a deliciosa fonte maior, Fontana Maiore, obra-prima dos dois Pisanos, pai e filho, até hoje orgulho e símbolo da cidade. E há também a comida local, variante da culinária úmbria com sutilezas várias e surpreendentes. Uma grande comida, afluente da imensa e quase infinita culinária italiana. Fora da rota dos turistas e executivos apressados, Perúgia é uma senha de bom gosto, senha de história, senha de verdade.


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