São Paulo, sexta-feira, 29 de março de 2002

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ANÁLISE

Morre também Hollywood

AMIR LABAKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Ninguém é perfeito: Billy Wilder está morto. Com ele, morre também o que nos acostumamos a chamar de Hollywood.
Austríaco de nascimento, Wilder refugiou-se nos EUA da sanha nazista, num fluxo que enriqueceu sobremaneira o nascente cinema sonoro americano com colaborações de Fritz Lang e Jean Renoir, entre muitíssimos outros. Wilder seria o mais bem adaptado desta segunda leva de imigrantes que escreveram as primeiras e mais brilhantes páginas da história de Hollywood.
No início, Hollywood era um endereço. Logo se tornou um ensolarado centro de filmagens para onde convergiram imigrantes judeus centro-europeus. Wilder desembarcou em Los Angeles na aurora da chamada "era dos estúdios". O cinema começara a falar, a produção americana tornara-se internacionalmente hegemônica e diretores passavam a ganhar poder no processo industrial.
Wilder estreou como roteirista, tendo por mentor o mestre da comédia alemã, Ernst Lubitsch (1892-1947). Até o fim de seus dias, Wilder bateria continência ao diretor de "Ninotchka" (1939).
A sensibilidade fílmica contemporânea, contudo, sempre esteve para próxima do toque Wilder que do pioneiro toque Lubitsch. As deliciosas comédias lubitschianas sempre pareceram algo ingênuas. Seus modelos eram as operetas do século 19, não contaminadas pelas tormentas do mundo pós-1914. Caberia a Wilder problematizar o modelo cômico de Lubitsch, temperando-o com um humor cáustico, sempre acompanhado por um travo de amargura. Se existiu uma comédia muda antes e depois de Chaplin, há uma sonora antes e depois de Wilder.
Europeu por contingência, cosmopolita por formação, americano por opção, não surpreende que Wilder tenha criado o primeiro filme genuinamente maiúsculo sobre Hollywood. "Crepúsculo dos Deuses" (50) apresenta uma visão diabolicamente premonitória do declínio do sistema de estúdios, ainda nos anos finais de seu apogeu. Nunca antes Hollywood teve revelada com igual crueldade sua lógica predatória e autofágica.
Wilder voltaria a ele, sistema já morto e enterrado, em seu penúltimo filme, o muito menos perfeito mas ainda assim muito subestimado "Fedora" (1978), cujas limitações eram reconhecidas pelo próprio diretor. Se em "Crepúsculo" o "gênio do sistema" ainda estava atuante, em "Fedora" pranteava-se a ascensão de um novo sistema sem qualquer genialidade, condenado a sucessos meramente argentários. Hollywood já não era mais Hollywood.
O que a substituiu lhe manteve o nome, mais por marketing do que por direito. O lucro puro e simples se impõe como único objetivo. A arte de grandes cineastas e produtores foi posta de lado em favor de produtos cada vez mais infantilizados.
Wilder assistiu a tudo, como incômoda testemunha de acusação. Farrapos humanos, em seus bem-cortados Armani, trafegam hoje sorridentes entre Sunset Boulevard e Wall Street. Já era mais que hora de Wilder descansar em paz.


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