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São Paulo, sábado, 29 de março de 2003

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Ao comparar revoltas urbanas no Rio e em Nova York, obra de historiador investiga formação das duas sociedades


Era uma vez na América...
... e no Brasil

Divulgação
Irlandeses e "nativistas" brigam em cena de "Gangues de Nova York", de Martin Scorsese


SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

Duas revoltas populares urbanas separadas no tempo por quase um século nesta mesma América podem oferecer uma chave para entender a peculiar formação das sociedades norte-americana e brasileira, além de algumas das diferenças entre as culturas políticas de ambos os países. Num original estudo de história comparada, o historiador carioca Marco Pamplona, 49, analisa semelhanças e diferenças entre a Revolta Antiabolicionista na Nova York de 1834 -próxima ao período retratado por Martin Scorsese em seu "Gangues de Nova York"-, e a Revolta da Vacina carioca, em 1904.
Pamplona mostra como a consolidação da República nos dois países, longe de ser um processo pacífico, foi marcada pela resistência ao que se apresentava como "moderno" e, muitas vezes, pela insurreição violenta dos que se viam excluídos da nova ordem.
"Revoltas, Repúblicas e Cidadania", publicado agora pela Record, é fruto do doutorado do autor na Universidade Columbia. Foi lançado inicialmente nos EUA, em 1996 ("Riots, Republicanism and Citizenship").
No livro, Pamplona, hoje professor dos departamentos de história da PUC-Rio e da Universidade Federal Fluminense, coloca lado a lado os dois episódios de violência urbana levando em conta o fato de terem ocorrido em um período de transição de sociedades que abandonavam a ordem colonial e encaminhavam-se para uma "modernidade" pautada pela crescente industrialização.
Ambos foram causados pela reação a fatores que diziam respeito à implantação de um ideário republicano na vida pública: o fim da escravidão e a adoção de medidas de saúde e higiene coletiva.
A transição pela qual passava o Rio de 1904 e a Nova York de 1834 vinha acompanhada por um processo acelerado de urbanização e de tentativa de inclusão na sociedade de uma crescente população de imigrantes e de negros.
A Revolta Antiabolicionista surgiu num ambiente de ebulição social em Nova York, que teve origem a partir de 1820, com a chegada cada vez mais volumosa de imigrantes irlandeses -o conflito entre estes e os americanos "nativistas" se prolongaria por décadas e seria pano de fundo de inúmeras turbulências na cidade.
A partir de 1830, quando o movimento abolicionista ganhou força nos EUA, houve forte reação de americanos, irlandeses e europeus em geral, que viam a libertação dos negros como uma ameaça de concorrência no instável e exíguo mercado de trabalho.
Em 1834, uma multidão foi às ruas para tentar impedir reuniões de grupos abolicionistas. Entre 7 e 19 de julho, houve depredações de igrejas e prédios públicos, além de ataques a religiosos e políticos favoráveis ao fim da escravidão. Negros foram perseguidos e muitas de suas casas, destruídas.
Já a Revolta da Vacina surgiu num contexto em que o Estado tentava abolir velhos hábitos que não se coadunavam com a tentativa de fazer com que a principal cidade do Brasil abandonasse seu aspecto colonial e ganhasse ares europeus. Algumas medidas adotadas foram extremamente impopulares e causaram, muitas vezes, reações violentas.
Em novembro de 1904, uma violenta rebelião popular explodiu como reação à obrigatoriedade da vacina contra a varíola. Por vários dias, o Rio ficou de pernas para o ar, com barricadas nas ruas, saques e depredações.
A comparação entre a revolta carioca e a nova-iorquina levou Pamplona a concluir que ambas foram "conservadoras", pois originaram-se do medo da mudança. Também se caracterizaram por deixar à vista sentimentos xenófobos semelhantes. No caso americano, contra irlandeses e, no brasileiro, contra portugueses.
Ajudaram, ainda, a determinar, cada uma a seu modo, a maneira como a elite e os nascentes partidos políticos se relacionariam com a população desde então.
Sobre o inusitado de sua abordagem histórica, Pamplona defende o uso da comparação e critica o provincianismo da historiografia brasileira. "O recurso à comparação torna-se inevitável em tempos de globalização e internacionalização da produção de conhecimento", diz.


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