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São Paulo, sábado, 29 de março de 2003

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HISTÓRIA

Ao analisar conflitos urbanos do passado, livro permite discutir temas como os da cidadania e da violência hoje

Comparação joga luz na intolerância atual

DA REDAÇÃO

Ao propor uma comparação entre dois episódios tão distantes na história e na geografia como a Revolta da Vacina no Rio, em 1904, e a Antiabolicionista em Nova York, em 1834, Marco Pamplona reforça que a análise não sofre prejuízo, pois a idéia é observar tempos históricos -e não cronológicos- semelhantes.
Para o historiador, o procedimento ajuda a "enfatizar o que há de comum -o tempo da implantação e consolidação da ordem republicana." Além disso, "a semelhança serve como ponto de partida para conhecer o que devem ser considerados aspectos originais de cada sociedade".
Leia os principais trechos da entrevista que Pamplona concedeu à Folha. (SYLVIA COLOMBO)

Folha - Por que seu trabalho centra-se na Revolta Antiabolicionista nos EUA e na da Vacina, no Brasil?
Marco Pamplona -
O caráter abrangente -em termos de número de pessoas envolvidas- e espetacular -no sentido da difusão e duração- foi o que me chamou a atenção inicialmente.
Mas o mais importante foi o fato de as duas revoltas insurgirem-se contra as reformas ou mudanças em curso nas duas sociedades, o que permitiu o ponto de partida comum para a busca das diferenças que possibilitou explicá-las e melhor contextualizá-las.

Folha - Ao tratar do caso nova-iorquino, você diz que as expressões de descontentamento estavam mais associadas a reações quanto aos limites da cidadania do que a um problema material. No caso carioca foi o contrário?
Pamplona -
As duas expressões de descontentamento estão associadas ao medo da mudança. No caso nova-iorquino, há o medo moral, mais coletivo, da "amalgamação". Do ponto de vista das elites, há o medo da ameaça que a disseminação do abolicionismo representava à frágil, mas duradoura, aliança entre norte e sul.
No caso carioca, há o medo coletivo da violência, especialmente a dirigida contra setores populares. Nos novos tempos de "progresso" e da República, os instrumentos de intervenção utilizados para internalizar costumes "civilizados" -códigos municipais, brigadas sanitaristas e vacina, por exemplo- se misturavam à repressão policial costumeira.

Folha - Se o português integrou-se melhor à sociedade carioca do que o irlandês à de NY, o que o sentimento antiportuguês tinha em comum com o antiirlandês?
Pamplona -
O estranhamento do "outro", fosse ele autóctone ou estrangeiro, produzido por grupos identificados direta ou indiretamente à uma dada etnicidade e a valores culturais que, por serem apresentados como dominantes, temiam ser ameaçados.
Menciono em Nova York os incidentes ligados ao sentimento antiirlandês, reação por vezes confundida com o anticatolicismo e com a defesa contra o afluxo da mão-de-obra barata que podia ameaçar os trabalhadores americanos de baixa renda.
No Rio, os anos iniciais da República também foram pontilhados com incidentes violentos que expressaram o sentimento antiportuguês. O "jacobinismo", como ficou conhecido esse movimento, associava-os a volta da monarquia ou a usura e a especulação de comerciantes lusitanos.
As diferenças entre o padrão de migração dos dois grupos ajudam a explicar a maior ou menos virulência desses incidentes.

Folha - O que você achou do filme "Gangues de Nova York"?
Pamplona -
É uma ficção de primeiríssima qualidade. Magníficas imagens nos revelam cenas impactantes de violência em Five Points, belas mesmo quando impressionistas. Houve pesquisa séria. Ninguém duvida da maestria de Scorsese nesse particular.
Pela licença poética que lhe deve ser permitida, não cabe cobrar-lhe o que não se propôs a fazer. Seu objetivo foi o de sublinhar a intolerância e a violência que marcaram os conflitos entre as gangues, como expressão da conflituosa relação entre a população imigrante, particularmente os irlandeses pobres de Five Points, e os grupos "nativistas" militantes.
O filme recupera do passado norte-americano os temas da intolerância, violência e ausência de cidadania, de inegável atualidade.

Folha - A representação é fiel?
Pamplona -
Cenas de diferentes revoltas nova-iorquinas, ocorridas ao longo de todo o século 19, são condensadas na tela e associadas àquele ano [o de 1863, quando da revolta contra o alistamento obrigatório, o "draft riot"" . Juntam-se "pedaços" dos "election riots" (quando os seguidores dos partidos whig e democrático se enfrentam nas ruas); do "flour riot" (cena de invasão e saque dos armazéns); do "anti-abolitionist riot" de 1834 (cena em que os habitantes de Five Points são intimados a assomar-se às janelas); do próprio "draft riot" e, é óbvio, dos intermitentes conflitos entre "nativistas" e imigrantes irlandeses. Tal condensação produz impressão de generalizada barbárie.
Ainda assim, devemos aplaudir o quadro apresentado. Hoje, continuamos a nos perguntar a respeito da intolerância étnica e social reinante, da ausência de cidadania para muitos e da violência urbana cotidiana. Feitas as devidas atualizações dos conflitos, vemos que, infelizmente, ainda há razões para inquietação.


REVOLTAS, REPÚBLICAS E CIDADANIA. Autor: Marco A. Pamplona. Editora: Record. Preço: R$ 38 (316 págs.)


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