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HISTÓRIA
Ao analisar conflitos urbanos do passado, livro permite discutir temas como os da cidadania e da violência hoje
Comparação joga luz na intolerância atual
DA REDAÇÃO
Ao propor uma comparação
entre dois episódios tão distantes
na história e na geografia como a
Revolta da Vacina no Rio, em
1904, e a Antiabolicionista em Nova York, em 1834, Marco Pamplona reforça que a análise não sofre
prejuízo, pois a idéia é observar
tempos históricos -e não cronológicos- semelhantes.
Para o historiador, o procedimento ajuda a "enfatizar o que há
de comum -o tempo da implantação e consolidação da ordem republicana." Além disso, "a semelhança serve como ponto de partida para conhecer o que devem ser
considerados aspectos originais
de cada sociedade".
Leia os principais trechos da entrevista que Pamplona concedeu
à Folha.
(SYLVIA COLOMBO)
Folha - Por que seu trabalho centra-se na Revolta Antiabolicionista
nos EUA e na da Vacina, no Brasil?
Marco Pamplona - O caráter
abrangente -em termos de número de pessoas envolvidas- e
espetacular -no sentido da difusão e duração- foi o que me chamou a atenção inicialmente.
Mas o mais importante foi o fato
de as duas revoltas insurgirem-se
contra as reformas ou mudanças
em curso nas duas sociedades, o
que permitiu o ponto de partida
comum para a busca das diferenças que possibilitou explicá-las e
melhor contextualizá-las.
Folha - Ao tratar do caso nova-iorquino, você diz que as expressões de descontentamento estavam mais associadas a reações
quanto aos limites da cidadania do
que a um problema material. No
caso carioca foi o contrário?
Pamplona - As duas expressões
de descontentamento estão associadas ao medo da mudança. No
caso nova-iorquino, há o medo
moral, mais coletivo, da "amalgamação". Do ponto de vista das elites, há o medo da ameaça que a
disseminação do abolicionismo
representava à frágil, mas duradoura, aliança entre norte e sul.
No caso carioca, há o medo coletivo da violência, especialmente
a dirigida contra setores populares. Nos novos tempos de "progresso" e da República, os instrumentos de intervenção utilizados
para internalizar costumes "civilizados" -códigos municipais,
brigadas sanitaristas e vacina, por
exemplo- se misturavam à repressão policial costumeira.
Folha - Se o português integrou-se melhor à sociedade carioca do
que o irlandês à de NY, o que o sentimento antiportuguês tinha em
comum com o antiirlandês?
Pamplona - O estranhamento do
"outro", fosse ele autóctone ou estrangeiro, produzido por grupos
identificados direta ou indiretamente à uma dada etnicidade e a
valores culturais que, por serem
apresentados como dominantes,
temiam ser ameaçados.
Menciono em Nova York os incidentes ligados ao sentimento
antiirlandês, reação por vezes
confundida com o anticatolicismo e com a defesa contra o afluxo
da mão-de-obra barata que podia
ameaçar os trabalhadores americanos de baixa renda.
No Rio, os anos iniciais da República também foram pontilhados com incidentes violentos que
expressaram o sentimento antiportuguês. O "jacobinismo", como ficou conhecido esse movimento, associava-os a volta da
monarquia ou a usura e a especulação de comerciantes lusitanos.
As diferenças entre o padrão de
migração dos dois grupos ajudam
a explicar a maior ou menos virulência desses incidentes.
Folha - O que você achou do filme
"Gangues de Nova York"?
Pamplona - É uma ficção de primeiríssima qualidade. Magníficas
imagens nos revelam cenas impactantes de violência em Five
Points, belas mesmo quando impressionistas. Houve pesquisa séria. Ninguém duvida da maestria
de Scorsese nesse particular.
Pela licença poética que lhe deve
ser permitida, não cabe cobrar-lhe o que não se propôs a fazer.
Seu objetivo foi o de sublinhar a
intolerância e a violência que
marcaram os conflitos entre as
gangues, como expressão da conflituosa relação entre a população
imigrante, particularmente os irlandeses pobres de Five Points, e
os grupos "nativistas" militantes.
O filme recupera do passado
norte-americano os temas da intolerância, violência e ausência de
cidadania, de inegável atualidade.
Folha - A representação é fiel?
Pamplona - Cenas de diferentes
revoltas nova-iorquinas, ocorridas ao longo de todo o século 19,
são condensadas na tela e associadas àquele ano [o de 1863, quando
da revolta contra o alistamento
obrigatório, o "draft riot"" . Juntam-se "pedaços" dos "election
riots" (quando os seguidores dos
partidos whig e democrático se
enfrentam nas ruas); do "flour
riot" (cena de invasão e saque dos
armazéns); do "anti-abolitionist
riot" de 1834 (cena em que os habitantes de Five Points são intimados a assomar-se às janelas);
do próprio "draft riot" e, é óbvio,
dos intermitentes conflitos entre
"nativistas" e imigrantes irlandeses. Tal condensação produz impressão de generalizada barbárie.
Ainda assim, devemos aplaudir
o quadro apresentado. Hoje, continuamos a nos perguntar a respeito da intolerância étnica e social reinante, da ausência de cidadania para muitos e da violência
urbana cotidiana. Feitas as devidas atualizações dos conflitos, vemos que, infelizmente, ainda há
razões para inquietação.
REVOLTAS, REPÚBLICAS E CIDADANIA. Autor: Marco A. Pamplona.
Editora: Record. Preço: R$ 38 (316 págs.)
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