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São Paulo, sábado, 29 de março de 2003

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RODAPÉ

O postscriptum da "Geração 90"

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Não existem mais movimentos estéticos, grupos de vanguarda com manifestos e propostas utópicas. Mas há hoje em São Paulo um grupo de escritores que mantêm uma intensa vida literária, com encontros em bares, troca de originais, lançamentos de títulos e até uma feira, a Primavera dos Livros (que também acontece no Rio), promovida por editoras de pequeno porte, que veiculam boa parte da produção daquilo que poderíamos chamar de "Geração 90" (título, aliás, de uma antologia de contos lançada pela Boitempo e organizada por um de seus mais talentosos representantes, Nelson de Oliveira).
Nesta semana, doze desses autores lançaram uma revista intitulada "PS:SP", que dá uma boa idéia das preocupações que rondam estas cabeças urbanas. Não se trata de uma publicação com periodicidade regular, mas de uma "revista comemorativa" (segundo a expressão dos editores Marcelino Freire e Nelson de Oliveira), um postscriptum daquilo que "veio depois do que está escrito em SP", um instantâneo da prosa realizada na cidade que é uma metonímia do Brasil.
Com um projeto gráfico de cair o queixo e imagens dos escritores feitas pelo fotógrafo J.R.Duran, "PS:SP" mostra como nossos contistas e romancistas (diferentemente de nossos poetas) parecem gozar de certa liberdade diante da tradição, de teorias e de bandeiras estéticas, a ponto de terem concebido uma revista "sem manifesto", "uma revista de uma turma de escritores que se cruzou um dia, bebeu cerveja, tomou café, falou mal dos outros", "sem complicação, sem mistério".
Essa indiferença em relação ao passado literário aponta, justamente, para um compromisso não-literário com o presente. Embora se possa detectar continuidades entre, por exemplo, Nelson de Oliveira e Campos de Carvalho, ou entre Fernando Bonassi e Graciliano Ramos, o fato é que estamos diante de narrativas cujo experimentalismo representa menos uma pesquisa formal do que uma tentativa de captar a dispersão da realidade contemporânea, o novo, o estranho, o desviante, o excluído.
Se a experiência da metrópole define esses escritores de classe média, o habitat de suas ficções é a periferia ou o centro decadente, cuja fauna de desvalidos, traficantes e sonâmbulos denota a falência dos projetos civilizatórios contidos na idéia da "urbe".
Há um evidente fascínio pela marginalidade nessa geração e por isso muitos dos contos de "PS:SP" mimetizam essa paisagem de violência e degradação, o jargão brutalista de "manos" e "meganhas" (Bonassi, Ronaldo Bressane, André Sant'Anna), um cotidiano de melancolia doméstica (Ivana Arruda Leite, Marcelino Freire) e uma vida pública que se passa em padarias e lanchonetes engorduradas, botecos esquálidos, ruas deterioradas (Bruno Zeni, Joca Reiners Terron).
Literatura, porém, não é simples reprodução do real. E a mimese (que está na raiz da imaginação literária) não é apenas imitação do existente, mas também transcendência e abalo no sistema de representações. Nos contos de "PS:SP", essa transcendência aparece na maneira muito particular com que cada escritor busca uma pequena epifania a partir da sordidez. Em "Sexy Shop", por exemplo, Marcelo Mirisola transforma a visita a uma loja de artefato eróticos em uma espécie de liturgia, um auto-de-fé com bonecas infláveis e cabines de peep show. Claudio Galperin faz um contraponto entre a história do arquiduque Ferdinando (cujo assassinato deflagrou a Primeira Guerra) e uma história de amor com "o sublime e o terrível habitando a mesma morada". E Luiz Ruffato dá continuidade a uma obra composta de narrativas intimistas e fragmentárias, afastando-se bastante dos demais autores da coletânea.
Tal diversidade de recursos criativos mostra como essa geração de escritores, embora mantendo os pés na realidade, procura na literatura uma forma de compreensão e ultrapassamento. Nesse sentido, o belíssimo "Salmo", de Marçal Aquino, vale como uma meditação sobre o misto de atração e repugnância que essa realidade de destruição exerce sobre todos nós.


PS:SP
    
Autor: vários
Editora: Ateliê (tel. 0/xx/11/ 4612-9666)
Quanto: R$ 30 (104 págs.)



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