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São Paulo, sábado, 29 de março de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

"HIPÉRION OU O EREMITA NA GRÉCIA"

Romance epistolar de Friedrich Hölderlin agrega filosofia, política e poesia

Obra dá voz a lamento grego por seu declínio

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

"Com frequência, caminharemos na noite alegre pelas sombras de nosso pomar e escutaremos o deus em nós, enquanto as plantas levantam sua cabeça baixa da sonolência do meio-dia e a vida silenciosa das suas flores se refresca banhando no orvalho seus braços ternos... E então, pela manhã, quando o nosso vale, como um leito de rio, se enche de luz cálida e a correnteza dourada corre silenciosa por entre as árvores, rodeando nossa casa, e a sua criação embelezará os cômodos encantadores, e você caminhará nesse brilho solar e abençoará o meu dia com a sua graça, querida!"
E então imagine mais umas 160 páginas de prosa nesse tom e respire fundo. Este é o "Hipérion", romance epistolar de Friedrich Hölderlin (1770-1843).
Trata-se de um dos mais importantes textos da literatura alemã, não só pelas características poéticas da narrativa, como também por suas dimensões filosóficas e políticas. De fato, há muita filosofia, política e poesia ao mesmo tempo neste livro -e bem pouca narrativa. Amigo de Hegel e Schelling, Hölderlin imagina uma sequência de cartas escritas por um jovem grego, Hipérion, a um amigo alemão, Belarmino.
Hipérion lamenta o estado de desalento de seu país (a Grécia, no século 18, vivia sob o domínio turco), em contraste com a harmonia e a vitalidade espiritual da Antiguidade. Encontra no belo guerreiro Alabanda alguém que o inspira ao entusiasmo patriótico e a ferventes comoções amorosas. "Ele, amargurado e embrutecido desde a juventude e, contudo, cheio de amor no mais fundo do coração (...) Eu, no mais íntimo, já tão apartado de tudo, no mais fundo da alma, estranho e solitário entre os homens (...) Os dois jovens não deveriam se abraçar, então, numa pressa tempestuosa e alegre?"
Mas logo surge entre Alabanda e Hipérion um desentendimento, apresentado em parágrafos mais nebulosos do que o anterior. Mais tarde Hipérion conhecerá a angelical e florescente Diotima, com quem partilhará suas reflexões sobre o passado grego.
Peripécias vagas e exasperadas afastam Hipérion de Diotima, fazem-no reconciliar-se com Alabanda, separar-se deste em seguida e, mais uma vez, perder Diotima; são desencontros que o narrador atribui, em parte, às confusas e frustradas tentativas militares de libertação da Grécia, na batalha de Tcheshmé (1770). Ler "Hipérion" como um romance, como pura obra ficcional, é arriscar-se a sérios reveses perante as forças do entorpecimento, da desatenção e do tédio. Assim como a Alemanha nos tempos de Hölderlin, o livro é um território disperso e fragmentário, em que cada página conta com desiguais poderes de persuasão. Porém, se é flagrante o paralelo entre a debilidade política da Alemanha e o declínio irrecuperável da Grécia aos olhos de Hölderlin, o texto deriva disto alguns de seus momentos mais expressivos.
"Não consigo ver um povo tão dilacerado como os alemães. Você vê artesãos, e não homens; pensadores, mas não homens; sacerdotes, mas não homens; senhores e servos, jovens e pessoas sérias, mas não homens... "Cada qual faz o que lhe compete", você dirá, e eu também o digo. Só que é preciso fazê-lo com toda a alma (...) e um ser humano, uma vez adestrado, serve apenas ao seu objetivo, busca seu proveito, não se entusiasma mais."
O problema, claro, não é só germânico. Para Hölderlin, quando alguém se deixa prender à sua especialidade estaria se dissociando de si mesmo, da natureza e dos seus iguais. A busca da harmonia do homem com a natureza e a aspiração a uma livre comunidade política -Diotima e Alabanda- se entrelaçam no livro de Hölderlin; "Hipérion" formula de modo lírico preocupações que, com Schelling, Hegel e Marx modificariam a história da filosofia e da política a partir do século 19.
Já havia uma tradução do livro, feita por Márcia de Sá Cavalcante, para a editora Vozes. A primeira frase ficou assim: "A esse livro gostaria de ver dedicado o amor dos alemães". A nova tradução, de Erlon José Paschoal, é mais clara: "Gostaria que esse livro recebesse o amor dos alemães".
Mas nem sempre a clareza se sustenta. Apenas um exemplo. "A natureza era sacerdotisa e o homem o seu deus. Nela, toda a vida e cada forma e cada som oriundo dela eram apenas um eco entusiasmado do magnífico ao qual ela pertencia." Some-se a isso um uso inconvincente do "você" e de outras coloquialidades ("Escute aqui!") e o leitor desta edição tem um caminho bastante áspero à sua frente. Como recompensa, o excelente posfácio de Alexander Honold completa o livro.


Hipérion ou o Eremita na Grécia
     Autor: Friedrich Hölderlin Editora: Nova Alexandria Tradução: Erlon José Paschoal Quanto: R$ 26 (184 págs.)



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