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WALTER SALLES
"Corações e Mentes" e a guerra da informação
Até começar a guerra no Iraque, tinha a impressão de
que a CNN era o que podia haver
de pior na televisão segmentada.
Uma espécie de MTV da notícia,
em que assuntos graves são tratados rapidamente, a partir de um
ponto de vista ideológico claramente demarcado. Globalização
da informação, campo sem contracampo.
A cobertura do conflito não tem
ajudado a alterar essa percepção.
Os gráficos da emissora retomam,
em letras garrafais, a terminologia oficial do Pentágono: "Operação Liberação do Iraque". Como
em um filme B, os iraquianos são
muitas vezes apelidados de "The
bad guys", "os maus". Alguns correspondentes da emissora, como
W. Rodgers, fazem Galvão Bueno
parecer um comentarista comedido. A bordo do 7º regimento de
Cavalaria, Rodgers solta pérolas
como essa: "Este é o maior movimento de tanques da história, e
está prestes a nocautear Bagdá"...
Na terça à noite, em um comovente exercício de auto-referência, a rede comparou as imagens
desta guerra com outras usadas
em conflitos armados ao longo do
século passado. "A diferença é
que as novas tecnologias trazem a
guerra ao vivo, no conforto do seu
lar", ouviu-se.
Foi, certamente, um momento
de extraordinária candura: as dezenas de câmeras que acompanham as forças armadas norte-americanas, dos tanques aos porta-aviões, transmitem a estranha
sensação de que o fenômeno dos
"reality shows" chegou ao seu
máximo ponto de expressão. Como se fosse uma guerra virtual,
que pode ser acompanhada a
qualquer hora do dia ou da noite
na telinha.
Zapeando de um canal a outro
durante essa semana, descobre-se
que há coisa ainda pior no ar do
que a CNN, como a Fox News e a
MSNBC. Na Fox, comentaristas
vociferantes comemoram o avanço das tropas norte-americanas
como se fizessem parte de uma
torcida organizada de futebol. Na
MSNBC, os soldados são chamados de "os bravos" e as vítimas
norte-americanas, de "heróis que
tombaram". Um clipe patriótico e
recorrente termina com soldados
norte-americanos abraçando
criancinhas iraquianas, acompanhados do slogan "Longe de casa,
perto dos nossos corações". Vítimas civis iraquianas são raramente focalizadas. E quando a rede Al Jazeera o faz, as redes norte-americanas reclamam em coro,
em perfeita sincronicidade com
Donald Rumsfeld.
"A cobertura das redes norte-americanas de TV ajudou a nos
levar a essa guerra", disseram vários analistas independentes ao
"New York Times", no sábado
passado. As televisões não questionaram as supostas ligações que
a administração Bush fez entre
Saddam Hussein e a Al Qaeda.
Resultado: pesquisas recentes
apontam que 50% dos norte-americanos pensam que Saddam
estava diretamente envolvido nos
ataques de 11 de setembro, e que
vários dos terroristas eram iraquianos.
Nesse contexto de manipulação
da informação, o lançamento recente do DVD de "Corações e
Mentes",o documentário antiguerra mais emblemático dos últimos 30 anos, levanta questões
bastante pertinentes neste momento. Dirigido por Peter Davis,
"Corações e Mentes" disseca a
participação norte-americana na
Guerra do Vietnã. Foi lançado
em 1974, um ano depois dos EUA
baterem em retirada de Saigon, e
um ano antes dos norte-vietnamitas ganharem a guerra.
"Corações e Mentes" parte de
uma pergunta que poderia ser repetida hoje: o que os norte-americanos foram fazer, realmente, no
Vietnã? Os depoimentos que
abrem o filme dão pistas que podem nos levar ao... Iraque. O presidente Truman lembra que "a
nossa visão de progresso não se limita ao nosso país. Nós a estendemos a todos os países do mundo".
Já o secretário de Estado Foster
Dulles revela que a perda da Indochina equivaleria à perda de
importantes reservas de tungstênio. E Nixon, como Bush, assegura que, "no Vietnã, os Estados
Unidos estão agindo com um comedimento nos ataques sem precedentes numa guerra".
As imagens que "Corações e
Mentes" mostra da população civil vietnamita vitimada pelo napalm nos fazem recordar quem
efetivamente utilizou, em um
passado recente, armas químicas
de destruição em massa. Vendo
essas imagens, a pergunta indignada de um velho vietnamita, feita no final do filme, ganha toda
sua dimensão: "Que tipo de liberdade vocês querem nos oferecer?".
Na época em que foi lançado,
"Corações e Mentes" foi criticado
por pintar o conflito entre os defensores da guerra e os pacifistas
de forma redutora. A releitura
que se torna agora possível é amplamente favorável ao filme de
Davis. Não somente pela forma
em que mergulha no drama do
Vietnã, mas pela luz que projeta
no presente.
"Se foi possível fazer esse filme,
foi porque eu me interessei pelo
efeito das ações, enquanto as redes de TV só queriam saber de
ação. O apetite das TVs pelo que
era imediato e espetacular era insaciável", diz Davis. O Iraque não
é, certamente, o Vietnã. Mas, em
alguns momentos, a história parece querer se repetir.
P.S.: Talvez seja sintomático
que, em um ano como este, "Chicago" tenha ganho o Oscar. Afinal, o filme fala de uma jovem
mulher que, graças à manipulação da mídia e do público, consegue escapar de um crime que ela
efetivamente cometeu.
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