UOL


São Paulo, sábado, 29 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

WALTER SALLES

"Corações e Mentes" e a guerra da informação

Até começar a guerra no Iraque, tinha a impressão de que a CNN era o que podia haver de pior na televisão segmentada. Uma espécie de MTV da notícia, em que assuntos graves são tratados rapidamente, a partir de um ponto de vista ideológico claramente demarcado. Globalização da informação, campo sem contracampo.
A cobertura do conflito não tem ajudado a alterar essa percepção. Os gráficos da emissora retomam, em letras garrafais, a terminologia oficial do Pentágono: "Operação Liberação do Iraque". Como em um filme B, os iraquianos são muitas vezes apelidados de "The bad guys", "os maus". Alguns correspondentes da emissora, como W. Rodgers, fazem Galvão Bueno parecer um comentarista comedido. A bordo do 7º regimento de Cavalaria, Rodgers solta pérolas como essa: "Este é o maior movimento de tanques da história, e está prestes a nocautear Bagdá"...
Na terça à noite, em um comovente exercício de auto-referência, a rede comparou as imagens desta guerra com outras usadas em conflitos armados ao longo do século passado. "A diferença é que as novas tecnologias trazem a guerra ao vivo, no conforto do seu lar", ouviu-se.
Foi, certamente, um momento de extraordinária candura: as dezenas de câmeras que acompanham as forças armadas norte-americanas, dos tanques aos porta-aviões, transmitem a estranha sensação de que o fenômeno dos "reality shows" chegou ao seu máximo ponto de expressão. Como se fosse uma guerra virtual, que pode ser acompanhada a qualquer hora do dia ou da noite na telinha.
Zapeando de um canal a outro durante essa semana, descobre-se que há coisa ainda pior no ar do que a CNN, como a Fox News e a MSNBC. Na Fox, comentaristas vociferantes comemoram o avanço das tropas norte-americanas como se fizessem parte de uma torcida organizada de futebol. Na MSNBC, os soldados são chamados de "os bravos" e as vítimas norte-americanas, de "heróis que tombaram". Um clipe patriótico e recorrente termina com soldados norte-americanos abraçando criancinhas iraquianas, acompanhados do slogan "Longe de casa, perto dos nossos corações". Vítimas civis iraquianas são raramente focalizadas. E quando a rede Al Jazeera o faz, as redes norte-americanas reclamam em coro, em perfeita sincronicidade com Donald Rumsfeld.
"A cobertura das redes norte-americanas de TV ajudou a nos levar a essa guerra", disseram vários analistas independentes ao "New York Times", no sábado passado. As televisões não questionaram as supostas ligações que a administração Bush fez entre Saddam Hussein e a Al Qaeda. Resultado: pesquisas recentes apontam que 50% dos norte-americanos pensam que Saddam estava diretamente envolvido nos ataques de 11 de setembro, e que vários dos terroristas eram iraquianos.
Nesse contexto de manipulação da informação, o lançamento recente do DVD de "Corações e Mentes",o documentário antiguerra mais emblemático dos últimos 30 anos, levanta questões bastante pertinentes neste momento. Dirigido por Peter Davis, "Corações e Mentes" disseca a participação norte-americana na Guerra do Vietnã. Foi lançado em 1974, um ano depois dos EUA baterem em retirada de Saigon, e um ano antes dos norte-vietnamitas ganharem a guerra.
"Corações e Mentes" parte de uma pergunta que poderia ser repetida hoje: o que os norte-americanos foram fazer, realmente, no Vietnã? Os depoimentos que abrem o filme dão pistas que podem nos levar ao... Iraque. O presidente Truman lembra que "a nossa visão de progresso não se limita ao nosso país. Nós a estendemos a todos os países do mundo". Já o secretário de Estado Foster Dulles revela que a perda da Indochina equivaleria à perda de importantes reservas de tungstênio. E Nixon, como Bush, assegura que, "no Vietnã, os Estados Unidos estão agindo com um comedimento nos ataques sem precedentes numa guerra".
As imagens que "Corações e Mentes" mostra da população civil vietnamita vitimada pelo napalm nos fazem recordar quem efetivamente utilizou, em um passado recente, armas químicas de destruição em massa. Vendo essas imagens, a pergunta indignada de um velho vietnamita, feita no final do filme, ganha toda sua dimensão: "Que tipo de liberdade vocês querem nos oferecer?".
Na época em que foi lançado, "Corações e Mentes" foi criticado por pintar o conflito entre os defensores da guerra e os pacifistas de forma redutora. A releitura que se torna agora possível é amplamente favorável ao filme de Davis. Não somente pela forma em que mergulha no drama do Vietnã, mas pela luz que projeta no presente.
"Se foi possível fazer esse filme, foi porque eu me interessei pelo efeito das ações, enquanto as redes de TV só queriam saber de ação. O apetite das TVs pelo que era imediato e espetacular era insaciável", diz Davis. O Iraque não é, certamente, o Vietnã. Mas, em alguns momentos, a história parece querer se repetir.
P.S.: Talvez seja sintomático que, em um ano como este, "Chicago" tenha ganho o Oscar. Afinal, o filme fala de uma jovem mulher que, graças à manipulação da mídia e do público, consegue escapar de um crime que ela efetivamente cometeu.


Texto Anterior: Brasilienses montam "circo-presépio-espacial"
Próximo Texto: Panorâmica - Personalidade: Ator Daniel Ceccaldi morre aos 75
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.