São Paulo, sábado, 29 de abril de 2000


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Sobre o papel da literatura

da Reportagem Local

Leia a seguir trechos inéditos do ensaio "Filologia da Literatura Universal", a ser publicado em "Ensaios Literários de Erich Auerbach", da "Espírito Crítico".

"Já é tempo de nos perguntarmos sobre o significado que pode ter o termo "literatura universal", em seu sentido goethiano, quando referido ao presente e ao futuro provável. Nossa Terra, que constitui todo o domínio da literatura universal, torna-se a cada dia menor e mais pobre de diversidade.
"Ora, a literatura universal não se refere simplesmente aos traçoscomuns da humanidade, e sim a esta enquanto fecundação recíproca de elementos diversos. Seu pressuposto é a "felix culpa" da dispersão da humanidade em uma variedade de culturas. E o que acontece hoje, o que se está preparando? Por mil razões, de todos conhecidas, a vida humana uniformiza-se em todo o planeta. O processo de achatamento, originário da Europa, estende-se cada vez mais e soterra todas as tradições locais. É certo que, por toda parte, o sentimento nacional é mais forte e mais barulhento do que nunca, mas em toda parte ele toma a mesma direção, isto é, rumo às formas da vida moderna; e já é claro para o observador imparcial que os fundamentos intrínsecos da existência nacional estão se dissolvendo. As culturas européias ou fundadas por europeus, acostumadas a um longo e frutífero intercâmbio entre si, e além disso apoiadas pela consciência de seu próprio valor e modernidade, são as que melhor preservam a auto-suficiência, ainda que também aqui o processo de nivelamento progrida muito mais rapidamente do que antes. Mas a estandardização -seja conforme o modelo europeu-americano, seja conforme o russo-bolchevista- espalha-se sobre tudo; e não importa quão diferentes sejam os modelos, suas diferenças são relativamente pequenas se os compararmos com os antigos substratos -por exemplo, com as tradições islâmica, hindu ou chinesa. Se a humanidade conseguir escapar ilesa aos abalos que ocasiona um processo de concentração tão violento, tão vigorosamente rápido e tão mal preparado, então teremos de nos acostumar com a idéia de que, numa Terra uniformemente organizada, sobreviverá uma só cultura literária, que dentro de pouco tempo permanecerão vivas umas poucas línguas literárias (e talvez logo apenas uma). E assim a noção de literatura universal ver-se-ia simultaneamente realizada e destruída." (...)
"Tanto quanto sei, não possuímos ainda nenhuma tentativa de uma filologia sintética da literatura universal, a não ser por algumas tentativas nesse sentido no âmbito da cultura ocidental. Contudo, quanto mais a Terra se amalgama, tanto mais deverá se ampliar a atividade sintético-perspectivística. Tornar os homens conscientes de si (...) é uma grande tarefa e entretanto bem pequena, se pensarmos que não estamos apenas na Terra, mas também no mundo, no universo. O que outras épocas empreenderam, isto é, a determinação do lugar do homem no universo, parece-nos hoje distante.
"Seja como for, nossa pátria filológica é a Terra -a nação já não pode sê-lo. É certo que a coisa mais preciosa e indispensável que o filólogo herda é a língua e a cultura de sua nação; mas é preciso afastar-se delas e superá-las para que se tornem eficazes. Temos de retornar, em circunstâncias diferentes, ao que a cultura pré-nacional da Idade Média já possuía: a consciência de que o espírito não é nacional. Assim escreve Hugo de São Vítor (Didascalicon III. 20): "O grande princípio da virtude é que o espírito, exercitado paulatinamente, aprenda primeiro a transformar estas coisas visíveis e transitórias, para em seguida poder mesmo abandoná-las. Delicado é aquele para quem a pátria é doce. Bravo, aquele para quem a pátria é tudo o que existe. Mas perfeito é aquele para quem o mundo inteiro é exílio...". Hugo dirigia-se aos que buscavam a libertação do amor às coisas terrenas. Mas este é um bom caminho para aqueles que desejam conceber o devido amor ao mundo."


Tradução José Marcos Macedo e Samuel Titan Jr.



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