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BIENAL DO LIVRO
Um dos grandes intelectuais da atualidade, o francês Jean Baudrillard vem à Bienal de SP, lança três obras e fala à Folha sobre as inquietudes da contemporaneidade
O pensador das incertezas
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Baixinho, corpulento e bonachão, o senhor de óculos e careca
em meia-lua, vestindo camiseta
marrom com um pequeno furo
na altura de um dos ombros, não
traz na sua plácida fachada a mesma assustadora figura de "profeta
do apocalipse" que apresenta em
seus escritos.
Bastante sintomático para alguém que, desde os anos 60, vem
se dedicando a mostrar a fragilidade das aparências na sociedade
contemporânea. Aos 73 anos, reputação de um dos grandes intelectuais da atualidade pendurada
nas costas, o francês Jean Baudrillard se esmerou de tal forma em
mostrar que as coisas não são como aparentam que acabou homenageado, perdão pelo clichê, pela
indústria das ilusões.
É dentro de um exemplar do seu
clássico ensaio "Simulacros e Simulação" que Neo, o protagonista do filme gótico-futurista "Matrix", esconde um disquete, deixando entrever o capítulo "Sobre
o Niilismo". E o "niilismo" de
"Matrix", acredite, é fichinha perto do cenário projetado pelo pensador francês em seus mais recentes ensaios.
Foi para falar deles, sobretudo
de "A Troca Impossível", que a
Nova Fronteira está lançando no
Brasil, que Jean Baudrillard veio
na semana passada a São Paulo,
para uma palestra na Bienal do Livro paulistana.
Em uma sala apinhada de estudantes, professores e intelectuais
como o curador da 25ª Bienal de
Arte de São Paulo, Alfons Hug, e o
arquiteto Joaquim Guedes, Baudrillard defendeu que o pensamento contemporâneo deve desistir completamente de buscar
alguma âncora em idéias como
verdade e realidade.
"O pensamento deve ter como
base hoje a incerteza justamente
para que possamos criar uma
ruptura, criar uma oposição ao
processo de globalização."
Na sexta pela manhã, antes de
deixar o Brasil, o autor de "O Sistema dos Objetos" recebeu a Folha para uma conversa em torno
da incerteza, na qual fala sobre
utopias, realidade virtual, "reality
shows" e conclui: "Eu não creio
que o mundo tenha um sentido".
Folha - O sr. falou em sua conferência na Bienal e trata amplamente em seu livro da impossibilidade
de estabelecer trocas num universo globalizado e saturado de informações. Quais são as trocas possíveis hoje em dia?
Jean Baudrillard - O problema
central das trocas é que elas se baseiam em equivalências e, hoje,
não existe nenhum sistema de
equivalências. A troca, teoricamente, continua possível. Tudo
pode ser trocado. Isso é o que a
torna impossível. Não falo de trocas pessoais, mas de circulação,
de trocas generalizadas. Para que
a troca seja possível, precisa haver
uma quebra.
Folha - O sr. poderia dar um
exemplo?
Baudrillard - Sim. Houve recentemente uma pane generalizada
nas televisões na França. Então
todos voltaram a conversar. Isso
permitiu, por um tempo, o estabelecimento de relações duais,
entre duas pessoas. A parada do
fluxo de comunicação abriu espaço para a percepção da figura do
outro, pois o outro desapareceu
em nossa sociedade.
Folha - O outro, hoje, não seria o
personagem do "reality show"?
Baudrillard - De alguma forma,
sim (risos). O outro, hoje, é uma
espécie de figurante desse psicodrama artificial que é o "reality
show". Mas a relação do espectador com esses programas também não é uma troca. É uma convivência totalmente simulada.
Folha - O excesso de informações
é um dos problemas centrais do estabelecimento das trocas, não?
Baudrillard - Sim, existe uma
grande circulação de mensagens,
mas elas não são trocáveis por nada. Essa imensa massa de informações não se converte em ações.
A consequência é que hoje nos comunicamos, nos informamos
com uma facilidade incrível, mas
sentimos que falta alguma coisa. É
uma grande decepção.
Folha - O sr. vem pintando cenários muito sombrios para o futuro
do homem. O sr. não acredita em
nenhuma utopia?
Baudrillard - Crer não é um valor
forte o bastante. Podemos manter
uma espécie de crença, mas hoje
as utopias são mais regressivas do
que progressistas. São utopias arcaicas, de encontrar um lugar.
Folha - O sr. escreve em "A Troca
Impossível" que as tentativas de
dotar o mundo de um sentido sempre morrem no "muro da troca impossível". Não é possível encontrar
nenhum sentido no mundo?
Baudrillard - Quando as coisas
têm um sentido, isso é positivo.
Mas não precisamos dar sentido
para as coisas. Eu não creio que o
mundo tenha um sentido. Hoje
existe uma situação de incerteza
geral sobre a verdade final do
mundo. E não há algo fora dele
pelo qual possamos trocá-lo.
Folha - E a realidade virtual, não
seria uma forma de projetar o mundo fora dele mesmo?
Baudrillard - O problema do virtual não é dar um sentido ao
mundo, mas sim recriá-lo, refazer
o mundo à sua imagem e semelhança, como um clone. A verdade do homem é essa, é o clone. Eu
descrevo isso de uma maneira
"cool", mas sei que é terrível.
Folha - Qual o papel da religião
nesse jogo?
Baudrillard - A religião integra o
grupo das utopias regressivas. Ela
tende a virar apenas um refúgio.
Folha - O que o sr. acha da vinculação de terrorismo e religião?
Baudrillard - Não importa ao
que o terrorismo esteja ligado, se
ao anarquismo, ao separatismo,
ao fundamentalismo religioso. O
aspecto central do terrorismo é
que ele cria um acontecimento,
uma ruptura. Ele é uma forma de
contestação, violenta e terrível,
mas que questiona esse universo
generalizado. Evidentemente, hoje existe um antagonismo entre
dois tipos de fundamentalismo.
Um religioso e outro da globalização. O problema continua sendo
do valor. Os fundamentalistas
têm um sistema de valor muito
forte, enquanto nós não temos
mais valor nenhum. Saiu um livro
na França no qual o autor se dirige aos fundamentalistas islâmicos
e diz: "Vocês acham que vão destruir o sistema de valor ocidental,
mas nós já não temos um".
Folha - O que o sr. pensa dos protestos antiglobalização?
Baudrillard - Acho que esse fenômeno faz parte das resistências
políticas tradicionais, a manifestação política baseada na negação. A globalização, porém, anda
fora da esfera política. Então essas
manifestações não atingem o cerne da questão.
Folha - Na conferência que o sr.
fez na Bienal, o sr. comentou que a
chegada do líder de extrema-direita Jean-Marie Le Pen ao segundo
turno estaria ligada a uma apatia
política. Não houve também apatia
da esquerda e dos intelectuais?
Baudrillard - Os intelectuais são
sempre os culpados (risos). Eles
não têm um papel definido nessa
relação, não têm um papel crítico.
Se a esquerda cometeu um erro,
me parece que foi o de moralizar o
universo político e crer que tudo é
questão de direitos humanos. A
esquerda errou, mas a direita
também. Até porque eles são cada
vez mais parecidos, estão ambos
no mesmo espelho.
Folha - O sr. enfatizou em sua palestra na Bienal a perda das singularidades dentro do universo da
globalização. Que singularidades o
sr. vê no Brasil?
Baudrillard - Acho difícil responder pelo Brasil, mas posso dizer que alguns países escapam da
globalização. É o caso do Japão,
por exemplo, que tem comércio,
técnica e economia globalizados,
mas que ainda guarda relações
duais em sua sociedade. O islamismo tem muitas singularidades. Nesse caso, isso ajuda a explicar as suas manifestações violentas. No islamismo aparece o verdadeiro antagonismo ao sistema
de mundialização. Por isso penso
que a sorte não está lançada e que
a globalização não ganhou o jogo.
A África não está nem sendo considerada nessa partida e lá existem singularidades. Talvez a África seja uma utopia.
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