São Paulo, segunda-feira, 29 de abril de 2002

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BIENAL DO LIVRO

Um dos grandes intelectuais da atualidade, o francês Jean Baudrillard vem à Bienal de SP, lança três obras e fala à Folha sobre as inquietudes da contemporaneidade

O pensador das incertezas

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Baixinho, corpulento e bonachão, o senhor de óculos e careca em meia-lua, vestindo camiseta marrom com um pequeno furo na altura de um dos ombros, não traz na sua plácida fachada a mesma assustadora figura de "profeta do apocalipse" que apresenta em seus escritos.
Bastante sintomático para alguém que, desde os anos 60, vem se dedicando a mostrar a fragilidade das aparências na sociedade contemporânea. Aos 73 anos, reputação de um dos grandes intelectuais da atualidade pendurada nas costas, o francês Jean Baudrillard se esmerou de tal forma em mostrar que as coisas não são como aparentam que acabou homenageado, perdão pelo clichê, pela indústria das ilusões.
É dentro de um exemplar do seu clássico ensaio "Simulacros e Simulação" que Neo, o protagonista do filme gótico-futurista "Matrix", esconde um disquete, deixando entrever o capítulo "Sobre o Niilismo". E o "niilismo" de "Matrix", acredite, é fichinha perto do cenário projetado pelo pensador francês em seus mais recentes ensaios.
Foi para falar deles, sobretudo de "A Troca Impossível", que a Nova Fronteira está lançando no Brasil, que Jean Baudrillard veio na semana passada a São Paulo, para uma palestra na Bienal do Livro paulistana.
Em uma sala apinhada de estudantes, professores e intelectuais como o curador da 25ª Bienal de Arte de São Paulo, Alfons Hug, e o arquiteto Joaquim Guedes, Baudrillard defendeu que o pensamento contemporâneo deve desistir completamente de buscar alguma âncora em idéias como verdade e realidade.
"O pensamento deve ter como base hoje a incerteza justamente para que possamos criar uma ruptura, criar uma oposição ao processo de globalização."
Na sexta pela manhã, antes de deixar o Brasil, o autor de "O Sistema dos Objetos" recebeu a Folha para uma conversa em torno da incerteza, na qual fala sobre utopias, realidade virtual, "reality shows" e conclui: "Eu não creio que o mundo tenha um sentido".

Folha - O sr. falou em sua conferência na Bienal e trata amplamente em seu livro da impossibilidade de estabelecer trocas num universo globalizado e saturado de informações. Quais são as trocas possíveis hoje em dia?
Jean Baudrillard -
O problema central das trocas é que elas se baseiam em equivalências e, hoje, não existe nenhum sistema de equivalências. A troca, teoricamente, continua possível. Tudo pode ser trocado. Isso é o que a torna impossível. Não falo de trocas pessoais, mas de circulação, de trocas generalizadas. Para que a troca seja possível, precisa haver uma quebra.

Folha - O sr. poderia dar um exemplo?
Baudrillard -
Sim. Houve recentemente uma pane generalizada nas televisões na França. Então todos voltaram a conversar. Isso permitiu, por um tempo, o estabelecimento de relações duais, entre duas pessoas. A parada do fluxo de comunicação abriu espaço para a percepção da figura do outro, pois o outro desapareceu em nossa sociedade.

Folha - O outro, hoje, não seria o personagem do "reality show"?
Baudrillard -
De alguma forma, sim (risos). O outro, hoje, é uma espécie de figurante desse psicodrama artificial que é o "reality show". Mas a relação do espectador com esses programas também não é uma troca. É uma convivência totalmente simulada.

Folha - O excesso de informações é um dos problemas centrais do estabelecimento das trocas, não?
Baudrillard -
Sim, existe uma grande circulação de mensagens, mas elas não são trocáveis por nada. Essa imensa massa de informações não se converte em ações. A consequência é que hoje nos comunicamos, nos informamos com uma facilidade incrível, mas sentimos que falta alguma coisa. É uma grande decepção.

Folha - O sr. vem pintando cenários muito sombrios para o futuro do homem. O sr. não acredita em nenhuma utopia?
Baudrillard -
Crer não é um valor forte o bastante. Podemos manter uma espécie de crença, mas hoje as utopias são mais regressivas do que progressistas. São utopias arcaicas, de encontrar um lugar.

Folha - O sr. escreve em "A Troca Impossível" que as tentativas de dotar o mundo de um sentido sempre morrem no "muro da troca impossível". Não é possível encontrar nenhum sentido no mundo?
Baudrillard -
Quando as coisas têm um sentido, isso é positivo. Mas não precisamos dar sentido para as coisas. Eu não creio que o mundo tenha um sentido. Hoje existe uma situação de incerteza geral sobre a verdade final do mundo. E não há algo fora dele pelo qual possamos trocá-lo.

Folha - E a realidade virtual, não seria uma forma de projetar o mundo fora dele mesmo?
Baudrillard -
O problema do virtual não é dar um sentido ao mundo, mas sim recriá-lo, refazer o mundo à sua imagem e semelhança, como um clone. A verdade do homem é essa, é o clone. Eu descrevo isso de uma maneira "cool", mas sei que é terrível.

Folha - Qual o papel da religião nesse jogo?
Baudrillard -
A religião integra o grupo das utopias regressivas. Ela tende a virar apenas um refúgio.

Folha - O que o sr. acha da vinculação de terrorismo e religião?
Baudrillard -
Não importa ao que o terrorismo esteja ligado, se ao anarquismo, ao separatismo, ao fundamentalismo religioso. O aspecto central do terrorismo é que ele cria um acontecimento, uma ruptura. Ele é uma forma de contestação, violenta e terrível, mas que questiona esse universo generalizado. Evidentemente, hoje existe um antagonismo entre dois tipos de fundamentalismo. Um religioso e outro da globalização. O problema continua sendo do valor. Os fundamentalistas têm um sistema de valor muito forte, enquanto nós não temos mais valor nenhum. Saiu um livro na França no qual o autor se dirige aos fundamentalistas islâmicos e diz: "Vocês acham que vão destruir o sistema de valor ocidental, mas nós já não temos um".

Folha - O que o sr. pensa dos protestos antiglobalização?
Baudrillard -
Acho que esse fenômeno faz parte das resistências políticas tradicionais, a manifestação política baseada na negação. A globalização, porém, anda fora da esfera política. Então essas manifestações não atingem o cerne da questão.

Folha - Na conferência que o sr. fez na Bienal, o sr. comentou que a chegada do líder de extrema-direita Jean-Marie Le Pen ao segundo turno estaria ligada a uma apatia política. Não houve também apatia da esquerda e dos intelectuais?
Baudrillard -
Os intelectuais são sempre os culpados (risos). Eles não têm um papel definido nessa relação, não têm um papel crítico. Se a esquerda cometeu um erro, me parece que foi o de moralizar o universo político e crer que tudo é questão de direitos humanos. A esquerda errou, mas a direita também. Até porque eles são cada vez mais parecidos, estão ambos no mesmo espelho.

Folha - O sr. enfatizou em sua palestra na Bienal a perda das singularidades dentro do universo da globalização. Que singularidades o sr. vê no Brasil?
Baudrillard -
Acho difícil responder pelo Brasil, mas posso dizer que alguns países escapam da globalização. É o caso do Japão, por exemplo, que tem comércio, técnica e economia globalizados, mas que ainda guarda relações duais em sua sociedade. O islamismo tem muitas singularidades. Nesse caso, isso ajuda a explicar as suas manifestações violentas. No islamismo aparece o verdadeiro antagonismo ao sistema de mundialização. Por isso penso que a sorte não está lançada e que a globalização não ganhou o jogo. A África não está nem sendo considerada nessa partida e lá existem singularidades. Talvez a África seja uma utopia.


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