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BERNARDO CARVALHO
A imagem é o Verbo
Com um pouco de sorte,
"Kippur - O Dia do Perdão",
de Amos Gitai, ainda estará em
cartaz quando esta coluna for publicada. Porque é um desses filmes que, se depender da bilheteria, não ficam mais de uma semana em cartaz. "Kippur" estreou
em uma única sala. Pode ser um
filme chato. É um filme de guerra
em que nada acontece. Ou melhor: em que nada acontece como
costuma acontecer nos filmes de
guerra. Aliás, muita gente deve
achar chatos os três filmes do diretor israelense exibidos em São
Paulo nos últimos anos -e que
bastariam para consagrá-lo como
um dos cineastas mais importantes em atividade no mundo hoje.
"Kadosh - Laços Sagrados"
(1999) é tão claustrofóbico para o
espectador quanto a comunidade
de judeus ortodoxos deve ser para
alguns de seus membros, a exemplo do massacrado casal de protagonistas. O filme vê a religião por
uma lente que nada tem do relativismo antropológico ou ecumênico. O homem é a maior vítima.
O único relativismo do filme é
não atribuir esse privilégio, como
de costume, aos integrismos de
culturas alheias.
"Kedma" (2001), exibido na
Mostra do ano passado, trata da
chegada à Palestina de um grupo
de judeus refugiados da Europa,
nos últimos dias do domínio britânico, em 1948, pouco antes da
proclamação do Estado de Israel.
É um filme igualmente claustrofóbico, embora se passe ao ar livre, seguindo os passos dos recém-chegados, por território hostil e
devastado, até um kibutz -no
fundo, ninguém avança, tudo gira em círculos, como em "Kippur"
(2000).
O estranhamento começa logo
nas primeiras cenas de "Kedma",
com o desembarque clandestino
dos refugiados numa praia. Recebidos por militantes sionistas, que
lutam pela criação de Israel, logo
são surpreendidos pelos tiros dos
ingleses. Pelos padrões realistas, o
confronto é quase um pastelão.
Não se trata propriamente de
uma reconstituição naturalista.
O estranhamento prossegue, entre a tragédia e o humor negro,
com os judeus rechaçados pelos
ingleses e os árabes rechaçados
pelos judeus. Uns expulsando os
outros. Uns fugindo dos outros.
Uns contra os outros.
A maior dificuldade para o espectador vem do fato de que esta é
uma alegoria discreta, combinando diálogos um tanto declamatórios com uma representação no
mais das vezes realista. O espectador terá que esperar até o final,
até o discurso desesperado e profético de um dos protagonistas,
para confirmar as suas suspeitas.
Para Amos Gitai, por mais anacrônico que possa soar hoje, cinema é linguagem. E é como se o filme fosse escrito pela câmera.
Não poderia haver projeto mais
íntegro. As imagens de Gitai não
são ornamentos. Simplesmente
porque não são uma ilustração, a
tradução ou a transposição de
uma idéia ou de outra linguagem
para a tela. As imagens significam em si mesmas, elas são a linguagem, elas são a idéia. É o contrário da tradição publicitária,
incorporada pelo cinema brasileiro recente, em que a imagem é
efeito, um aposto, uma forma sobreposta ao conteúdo. Para Gitai,
a imagem é o conteúdo.
Isso é extraordinário em pelo
menos três cenas de "Kippur",
que acompanha um grupo de jovens soldados israelenses tentando resgatar feridos nas Colinas do
Golã, na fronteira com a Síria,
durante a guerra do Yom Kippur,
em outubro de 1973.
A guerra foi deflagrada no Dia
do Perdão, a data mais sagrada
do calendário judaico, num ataque-surpresa de sírios no norte e
egípcios no sul, que tentavam reconquistar territórios ocupados
por Israel desde 1967. Israel reagiu e acabou vencendo em 20
dias, não sem sofrer cerca de 2.000
baixas. Gitai era estudante de arquitetura. Foi convocado. O helicóptero em que estava foi abatido
pelos sírios durante uma missão
de resgate. "Kippur" é baseado na
sua experiência.
O filme segue dois amigos que
saem de uma cidade vazia, de
carro, e tentam chegar à frente de
batalha. 1) Na estrada, se vêem
presos num enorme engarrafamento. A câmera os acompanha
num longo travelling, abrindo caminho entre os carros e caminhões parados, numa sequência
um tanto absurda que remete ao
"Week-End", de Godard. 2) Mais
tarde, já durante a missão de resgate, eles tentam carregar, com o
auxílio de dois outros, um soldado ferido, numa maca, por um
terreno pantanoso. Afundam no
lamaçal, caem várias vezes com o
ferido na lama, numa tentativa
desesperada e patética de salvá-lo. A tragédia da cena fala por si.
3) Por último, já dentro do helicóptero, quando sobrevoam o
campo de batalha, o que vêem
são tanques abandonados e os
rastros de suas manobras circulares na lama. Um vasto desenho de
círculos que não levam a lugar
nenhum.
Gitai privilegia os planos-sequência, sem cortes, mas seu objetivo não é deixar se manifestar a
realidade "pura e simples" diante
das câmeras, como poderiam
pensar os mais apressados. A realidade aqui já é o texto. Gitai faz a
imagem escrevê-la. Assim como
no filme, não há avanços na guerra, tudo gira em círculos contra
um inimigo invisível, que nunca
se vê. Não poderia haver alegoria
mais eloquente. Um velho clichê
vem à cabeça: "Uma imagem vale
por mil palavras". A diferença, no
caso de Gitai, é que a imagem é
uma construção tão elaborada
quanto as mil palavras.
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