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São Paulo, terça-feira, 29 de abril de 2003

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BERNARDO CARVALHO

A imagem é o Verbo

Com um pouco de sorte, "Kippur - O Dia do Perdão", de Amos Gitai, ainda estará em cartaz quando esta coluna for publicada. Porque é um desses filmes que, se depender da bilheteria, não ficam mais de uma semana em cartaz. "Kippur" estreou em uma única sala. Pode ser um filme chato. É um filme de guerra em que nada acontece. Ou melhor: em que nada acontece como costuma acontecer nos filmes de guerra. Aliás, muita gente deve achar chatos os três filmes do diretor israelense exibidos em São Paulo nos últimos anos -e que bastariam para consagrá-lo como um dos cineastas mais importantes em atividade no mundo hoje.
"Kadosh - Laços Sagrados" (1999) é tão claustrofóbico para o espectador quanto a comunidade de judeus ortodoxos deve ser para alguns de seus membros, a exemplo do massacrado casal de protagonistas. O filme vê a religião por uma lente que nada tem do relativismo antropológico ou ecumênico. O homem é a maior vítima. O único relativismo do filme é não atribuir esse privilégio, como de costume, aos integrismos de culturas alheias.
"Kedma" (2001), exibido na Mostra do ano passado, trata da chegada à Palestina de um grupo de judeus refugiados da Europa, nos últimos dias do domínio britânico, em 1948, pouco antes da proclamação do Estado de Israel. É um filme igualmente claustrofóbico, embora se passe ao ar livre, seguindo os passos dos recém-chegados, por território hostil e devastado, até um kibutz -no fundo, ninguém avança, tudo gira em círculos, como em "Kippur" (2000).
O estranhamento começa logo nas primeiras cenas de "Kedma", com o desembarque clandestino dos refugiados numa praia. Recebidos por militantes sionistas, que lutam pela criação de Israel, logo são surpreendidos pelos tiros dos ingleses. Pelos padrões realistas, o confronto é quase um pastelão. Não se trata propriamente de uma reconstituição naturalista. O estranhamento prossegue, entre a tragédia e o humor negro, com os judeus rechaçados pelos ingleses e os árabes rechaçados pelos judeus. Uns expulsando os outros. Uns fugindo dos outros. Uns contra os outros.
A maior dificuldade para o espectador vem do fato de que esta é uma alegoria discreta, combinando diálogos um tanto declamatórios com uma representação no mais das vezes realista. O espectador terá que esperar até o final, até o discurso desesperado e profético de um dos protagonistas, para confirmar as suas suspeitas. Para Amos Gitai, por mais anacrônico que possa soar hoje, cinema é linguagem. E é como se o filme fosse escrito pela câmera.
Não poderia haver projeto mais íntegro. As imagens de Gitai não são ornamentos. Simplesmente porque não são uma ilustração, a tradução ou a transposição de uma idéia ou de outra linguagem para a tela. As imagens significam em si mesmas, elas são a linguagem, elas são a idéia. É o contrário da tradição publicitária, incorporada pelo cinema brasileiro recente, em que a imagem é efeito, um aposto, uma forma sobreposta ao conteúdo. Para Gitai, a imagem é o conteúdo.
Isso é extraordinário em pelo menos três cenas de "Kippur", que acompanha um grupo de jovens soldados israelenses tentando resgatar feridos nas Colinas do Golã, na fronteira com a Síria, durante a guerra do Yom Kippur, em outubro de 1973.
A guerra foi deflagrada no Dia do Perdão, a data mais sagrada do calendário judaico, num ataque-surpresa de sírios no norte e egípcios no sul, que tentavam reconquistar territórios ocupados por Israel desde 1967. Israel reagiu e acabou vencendo em 20 dias, não sem sofrer cerca de 2.000 baixas. Gitai era estudante de arquitetura. Foi convocado. O helicóptero em que estava foi abatido pelos sírios durante uma missão de resgate. "Kippur" é baseado na sua experiência.
O filme segue dois amigos que saem de uma cidade vazia, de carro, e tentam chegar à frente de batalha. 1) Na estrada, se vêem presos num enorme engarrafamento. A câmera os acompanha num longo travelling, abrindo caminho entre os carros e caminhões parados, numa sequência um tanto absurda que remete ao "Week-End", de Godard. 2) Mais tarde, já durante a missão de resgate, eles tentam carregar, com o auxílio de dois outros, um soldado ferido, numa maca, por um terreno pantanoso. Afundam no lamaçal, caem várias vezes com o ferido na lama, numa tentativa desesperada e patética de salvá-lo. A tragédia da cena fala por si. 3) Por último, já dentro do helicóptero, quando sobrevoam o campo de batalha, o que vêem são tanques abandonados e os rastros de suas manobras circulares na lama. Um vasto desenho de círculos que não levam a lugar nenhum.
Gitai privilegia os planos-sequência, sem cortes, mas seu objetivo não é deixar se manifestar a realidade "pura e simples" diante das câmeras, como poderiam pensar os mais apressados. A realidade aqui já é o texto. Gitai faz a imagem escrevê-la. Assim como no filme, não há avanços na guerra, tudo gira em círculos contra um inimigo invisível, que nunca se vê. Não poderia haver alegoria mais eloquente. Um velho clichê vem à cabeça: "Uma imagem vale por mil palavras". A diferença, no caso de Gitai, é que a imagem é uma construção tão elaborada quanto as mil palavras.


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