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"BOM DIA, NOITE"
Marco Bellocchio reflete pensamento das Brigadas Vermelhas em filme sobre assassinato de Aldo Moro
Quando a esquerda adere ao gansgsterismo
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"Com que freqüência os negócios determinam as
agendas estéticas?" A questão é levantada por Jonathan Rosenbaum, o principal crítico de cinema americano, em seu livro "Movie Wars", e vale a pena lembrá-la
agora, quando se lança "Bom Dia,
Noite", em cópia única, em SP.
Não é que o filme nos chegue
atrasado. Mas não estamos diante
de um pequeno filme de Rohmer
ou do relançamento de algum velho Godard -nesses casos, uma
cópia está até no tamanho justo.
Falamos do seqüestro e do assassinato de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas. Ele foi um dos
políticos italianos mais influentes
do pós-guerra. Democrata-cristão de carteirinha, ficou
célebre pelo acordo feito em 76
com os comunistas, que visava diminuir a instabilidade política e o
entra-e-sai de gabinetes. Moro
era, quando foi seqüestrado, a encarnação do Estado italiano.
Pode-se alegar que isso seja um
passado com interesse não mais
que relativo para nós brasileiros.
Aceitemos. É mais difícil, no entanto, aceitar o mesmo raciocínio
para as BV. Esse grupo de guerrilheiros radicais tentou dar sobrevida ao espírito rebelde de 68, porém o dotando de um dogmatismo sem nenhuma relação com o que havia de libertário (ou libertador) naquele primeiro momento.
É às brigadas -e seus correlatos- que se dirige o pensamento
de Marco Bellocchio. E esses correlatos existem aqui, ao nosso lado (chamam-se Sendero Luminoso e outros), com a mesma tendência ao gangsterismo desenvolvido pelas brigadas. Não faz tanto
tempo assim, um grupo chileno
seqüestrou gente aqui no Brasil e
atribuiu seus atos à luta política.
No momento do seqüestro de
Moro, as BV ainda não estão em
processo de gangsterização. É o
momento, parece entender Bellocchio, em que as águas se dividem. Em que da política se transita quase inadvertidamente ao assassinato e ao gangsterismo.
Qual a diferença entre os dois?
Não a retórica, certamente, que
continua a mesma. Mas, neste filme feito entre quatro paredes, é
justamente ali que Bellocchio
busca sua matéria: no vazio das
palavras. Pode-se falar em "justiça proletária". Mas quem fala?
Um jovem cercado por três companheiros. Existe uma quinta parede na trama: a TV. Por ela fica-se sabendo o que pensa a Itália.
Assim, enquanto os brigadistas
se ocupam de julgar Aldo Moro,
Bellocchio se encarrega de permitir chegar a nós o tipo de ética desenvolvido pela BV -que era o
mesmo de muita organização de
esquerda-, onde os interesses
-supostos- do proletariado
justificam mais ou menos tudo.
A ação entre quatro paredes dá
conta do agônico isolamento do
grupo, assim como da incompreensão dessas pessoas sobre os
italianos -proletários ou não. Ao
mesmo tempo, Bellocchio fixa-se
com atenção no "modus operandi" do grupo, que compreende
muito bem certos usos e costumes. Ou seja: é preciso embaralhar as aparências, representar a
comédia da respeitabilidade. Se
alguém tiver de ir preso, não é
quem praticou o crime, é quem
desrespeitou as leis da hipocrisia.
Em poucas palavras: Bellocchio
cria um filme comovente em torno de um assassinato torpe, reflete sobre o pensamento e as práticas da BV e, de passagem, dá uma
aula sintética, porém tremendamente eficaz, sobre o peso das
aparências na vida italiana.
Há alguns anos, entraria num
circuito de cinemas digno. Hoje,
estréia em um só cinema. Os negócios determinam as agendas estéticas, não há como negar.
Bom Dia, Noite
Buongiorno, Notte
Direção: Marco Bellocchio
Produção: Itália, 2003
Com: Maya Sansa, Luigi Lo Cascio
Quando: a partir de hoje no Cinesesc
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