São Paulo, quarta-feira, 29 de maio de 2002

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MARCELO COELHO

Um invasor inofensivo

Lembro-me de ter gostado muito de "E.T." na época de seu lançamento. Assistindo de novo ao filme, 20 anos depois, estive perto de me decepcionar. Tudo me pareceu um pouco descosido, inconsistente, feito às pressas. O episódio da "morte" e da "ressurreição" do extraterrestre, sem dúvida dos mais emocionantes do filme, deixou-me agora insatisfeito.
É como se tivesse sido posto ali apenas -justamente- para emocionar, sem cumprir nenhuma outra função no roteiro. É aquele típico esquema do melodrama: criar uma dificuldade artificial para depois retirá-la, conseguindo com isso o choro, o alívio e o aplauso da platéia.
Faço também algumas perguntas de criança: o que a nave tinha vindo fazer aqui? Como é que se esquecem do E.T.? Pegam-no de volta, simplesmente, sem deixar nenhuma mensagem aos terráqueos?
Curioso, aliás, que a "mídia" -por falar em perguntas idiotas- não apareça no filme; a primeira coisa que aconteceria atualmente seria um monte de repórteres e câmeras de televisão cercando a casa do menino Elliott assim que se descobrisse o estranho hóspede que estava ali.
Creio, em todo caso, que o roteiro meio frouxo importa pouquíssimo quando a gente vê o filme pela primeira vez, já que "E.T." vale pelo que cada cena, isoladamente, traz de surpreendente e de inesquecível ao mesmo tempo.
O momento em que a bicicleta sai voando sem esta nem aquela; o susto que leva o próprio E.T. ao ser descoberto pela primeira vez pelo garoto; as flores que renascem no vaso, ao toque do extraterrestre -cenas desse tipo e muitas outras são tão completas e significativas em si mesmas que é como se o filme fosse construído inteiramente em função de seus melhores momentos.
"E.T.", de certa forma, é a antologia de si mesmo, e a continuidade da história, o dia-a-dia do roteiro, o encadeamento fatual do filme nada significa perto do que há de memorável em cada surpresa que oferece.
Notei, alguns parágrafos acima, a falta de uma "mensagem" dos visitantes do espaço aos habitantes da Terra -e a questão também se aplica ao próprio filme. Uma de suas qualidades é que, se excetuarmos algumas idéias básicas -a importância do carinho, da amizade etc.-, não há nada de "moralizante", nenhum esquema de significação muito marcado nessa fantasia de Spielberg.
Esse julgamento parece meio esquisito, diante de um filme tão simples e compreensível. É que, embora muito simples, "E.T." não investe numa única fórmula, numa única ordem de "legibilidade", se podemos dizer assim. A habilidade de Spielberg foi a de misturar muitas coisas, muitos conteúdos, muitas reminiscências numa só figura.
O que significa o extraterrestre? O dedo mágico que toca no dedo do menino é uma referência ao afresco de Michelangelo, mas o E.T. não é Deus; parece mais um duende. Seus poderes mágicos são, contudo, limitados, acidentais, pouco operativos. No aperto, o E.T. é forçado a recorrer à técnica e monta, como pode, um telefone interestelar.
Conhecendo a Terra em pleno Dia das Bruxas, o extraterrestre é, ao mesmo tempo, criança e mago, animal doméstico e avô meio distraído. Pode também evocar a figura do padrasto, de pessoa estranha à família, com o qual as crianças, vivendo há algum tempo apenas com a mãe divorciada, terão aos poucos de se acostumar.
Como todo ser vindo de outro planeta, é certamente um invasor -mas, ao contrário de todo o imaginário hollywoodiano, não representa ameaça. Tampouco traz consigo alguma superioridade técnica; a nave que o transporta tem muito da abóbora dos contos de fadas.
Mesmo os possíveis vilões do filme -agentes federais ou cientistas que correm atrás do E.T. com lanternas- mais parecem médicos amedrontados do que oponentes.
Eis uma coisa excelente de "E.T.", aliás: é um filme sem inimigos. O grande problema a ser vencido, o desafio que, a cada cena isolada, tem de ser enfrentado pelos personagens não é o de derrotar um adversário, mas, sim, o de diminuir uma distância.
O menino humano e o visitante espacial tratam, aos poucos, de se entender mutuamente; do mesmo modo, é da comunicação com o seu planeta de origem que depende a sobrevivência do próprio E.T. Essa ambiguidade fundamental (por um lado, a humanização do extraterrestre e, por outro, a sua fidelidade ao mundo nebuloso de onde veio) não tem como ser resolvida no filme.
Daí, talvez, a impressão de que há algo nele de desamarrado, de não muito lógico, de pouco construído; mas é isso, sem dúvida, o que tem de mais bonito.



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