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MARCELO COELHO
Um invasor inofensivo
Lembro-me de ter gostado
muito de "E.T." na época de
seu lançamento. Assistindo de
novo ao filme, 20 anos depois, estive perto de me decepcionar. Tudo me pareceu um pouco descosido, inconsistente, feito às pressas.
O episódio da "morte" e da "ressurreição" do extraterrestre, sem
dúvida dos mais emocionantes do
filme, deixou-me agora insatisfeito.
É como se tivesse sido posto ali
apenas -justamente- para
emocionar, sem cumprir nenhuma outra função no roteiro. É
aquele típico esquema do melodrama: criar uma dificuldade artificial para depois retirá-la, conseguindo com isso o choro, o alívio e o aplauso da platéia.
Faço também algumas perguntas de criança: o que a nave tinha
vindo fazer aqui? Como é que se
esquecem do E.T.? Pegam-no de
volta, simplesmente, sem deixar
nenhuma mensagem aos terráqueos?
Curioso, aliás, que a "mídia"
-por falar em perguntas idiotas- não apareça no filme; a primeira coisa que aconteceria
atualmente seria um monte de repórteres e câmeras de televisão
cercando a casa do menino Elliott
assim que se descobrisse o estranho hóspede que estava ali.
Creio, em todo caso, que o roteiro meio frouxo importa pouquíssimo quando a gente vê o filme
pela primeira vez, já que "E.T."
vale pelo que cada cena, isoladamente, traz de surpreendente e de
inesquecível ao mesmo tempo.
O momento em que a bicicleta
sai voando sem esta nem aquela;
o susto que leva o próprio E.T. ao
ser descoberto pela primeira vez
pelo garoto; as flores que renascem no vaso, ao toque do extraterrestre -cenas desse tipo e
muitas outras são tão completas e
significativas em si mesmas que é
como se o filme fosse construído
inteiramente em função de seus
melhores momentos.
"E.T.", de certa forma, é a antologia de si mesmo, e a continuidade da história, o dia-a-dia do roteiro, o encadeamento fatual do
filme nada significa perto do que
há de memorável em cada surpresa que oferece.
Notei, alguns parágrafos acima,
a falta de uma "mensagem" dos
visitantes do espaço aos habitantes da Terra -e a questão também se aplica ao próprio filme.
Uma de suas qualidades é que, se
excetuarmos algumas idéias básicas -a importância do carinho,
da amizade etc.-, não há nada
de "moralizante", nenhum esquema de significação muito marcado nessa fantasia de Spielberg.
Esse julgamento parece meio esquisito, diante de um filme tão
simples e compreensível. É que,
embora muito simples, "E.T." não
investe numa única fórmula, numa única ordem de "legibilidade", se podemos dizer assim. A
habilidade de Spielberg foi a de
misturar muitas coisas, muitos
conteúdos, muitas reminiscências
numa só figura.
O que significa o extraterrestre?
O dedo mágico que toca no dedo
do menino é uma referência ao
afresco de Michelangelo, mas o
E.T. não é Deus; parece mais um
duende. Seus poderes mágicos
são, contudo, limitados, acidentais, pouco operativos. No aperto,
o E.T. é forçado a recorrer à técnica e monta, como pode, um telefone interestelar.
Conhecendo a Terra em pleno
Dia das Bruxas, o extraterrestre é,
ao mesmo tempo, criança e mago,
animal doméstico e avô meio distraído. Pode também evocar a figura do padrasto, de pessoa estranha à família, com o qual as
crianças, vivendo há algum tempo apenas com a mãe divorciada,
terão aos poucos de se acostumar.
Como todo ser vindo de outro
planeta, é certamente um invasor
-mas, ao contrário de todo o
imaginário hollywoodiano, não
representa ameaça. Tampouco
traz consigo alguma superioridade técnica; a nave que o transporta tem muito da abóbora dos contos de fadas.
Mesmo os possíveis vilões do filme -agentes federais ou cientistas que correm atrás do E.T. com
lanternas- mais parecem médicos amedrontados do que oponentes.
Eis uma coisa excelente de
"E.T.", aliás: é um filme sem inimigos. O grande problema a ser
vencido, o desafio que, a cada cena isolada, tem de ser enfrentado
pelos personagens não é o de derrotar um adversário, mas, sim, o
de diminuir uma distância.
O menino humano e o visitante
espacial tratam, aos poucos, de se
entender mutuamente; do mesmo
modo, é da comunicação com o
seu planeta de origem que depende a sobrevivência do próprio E.T.
Essa ambiguidade fundamental
(por um lado, a humanização do
extraterrestre e, por outro, a sua
fidelidade ao mundo nebuloso de
onde veio) não tem como ser resolvida no filme.
Daí, talvez, a impressão de que
há algo nele de desamarrado, de
não muito lógico, de pouco construído; mas é isso, sem dúvida, o
que tem de mais bonito.
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