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MEMÓRIA
Ator tentava se impor ao caos do mundo
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Existia no tipo de Jack
Lemmon um quê de racionalidade feroz que com certeza
o ajudou a fazer uma cena antológica do cinema: o diálogo
final de "Quanto Mais Quente,
Melhor", de Billy Wilder.
Lá está Jack em trajes de mulher. E a seu lado um milionário apaixonado por "ela". Como fazer para explicar que esse
amor era impossível? Qualquer
um diria: "Eu sou um homem".
Não Jack Lemmon. Ele tenta
demonstrar racionalmente a
impossibilidade daquele amor.
Até que, vencido pela paixão
inabalável do parceiro, arranca
a peruca e diz que não é uma
mulher. Aí vem a célebre réplica: ninguém é perfeito.
O traço racional dos personagens de Jack Lemmon se manifesta aqui até o paroxismo, pois
opta por se livrar do apaixonado de maneiras indiretas, como
uma mulher faria: evitando ferir o amor próprio do outro.
Lemmon expressava a fragilidade da razão, sua dificuldade
de se impor ao caos do mundo.
Outro momento antológico:
quando mostra para Shirley
MacLaine, em "Se Meu Apartamento Falasse", como coar a
água do macarrão numa raquete de tênis. Jack reinventa
um objeto, explora suas possibilidades, distorce-as.
É na parceria de muitos filmes com Walter Matthau que o
aspecto ao mesmo tempo frágil
e racional fica mais claro, pois
cabe a Matthau, geralmente, representar o durão, o mais esperto, o que dribla as regras do
bom senso. Fiquemos apenas
com "A Primeira Página", também de Wilder. São dois jornalistas. Matthau é o diretor de redação disposto a usar todos os
truques para impedir que seu
melhor repórter abandone o
jornalismo. Jack Lemmon é o
repórter em questão, que tentará se safar sem nenhuma trapaça, procurando manter intactas
as leis da lógica.
Lemmon foi um dos grandes
atores de cinema do século 20.
Expressou talvez mais intensamente do que qualquer outro
ator o conflito, tão intenso ao
longo deste século, entre as forças obscurantistas e as que buscam compreender o mundo e
fazer da compreensão a base da
presença humana na Terra.
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