São Paulo, terça-feira, 29 de junho de 2004

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FERNANDO BONASSI

Considerações sobre o teatro que interessa fazer e ver

Será o teatro um organizador da vida ou a vida uma desorganização do teatro? O teatro retira a ignorância com uma mão e cobra ingresso com a outra. A platéia paga ou é convidada. Portanto o teatro é facultativo. Quando é obrigatório, é festa cívica, proposta tísica; é letra morta, é cartório, é velório; se torna crítico, frígido, teórico, eficiente, insuficiente. O teatro é emprestável e imprestável por sua natureza gregária, brincalhona e preguiçosa, é ridículo e incompreensível para todo aquele que se restringe às evidências e não venderá nada que preste, para espanto dos diretores de marketing, agenciadores, captadores atravessadores e criadores de desejos e produtos modernos. O teatro é velho, é rodado, é cheio de crueldade e já deu o que tinha que dar em pagamento de seus próprios maus sentimentos. Não será por dinheiro que o teatro se prostituirá, mas por prestígio, o que é impagável. Por isso, no teatro, os prêmios são distribuídos por um júri de amigos ocasionais, mais ou menos moralistas. Já os inimigos mortais do teatro também apunhalam-se shakespearianamente pelas costas, mas fingem que são legais, que são leais, que são bons maridos. No teatro também existe esse tipo de melodrama, mas ninguém tem o direito de exigir qualquer espécie de fidelidade do teatro, a não ser o compromisso de prontidão eterna e dedicada à causa da liberdade e do pensamento. Cuidado: uma coisa nem sempre leva à outra, ou vice-versa, podendo até levar ao contrário! O teatro é confuso, mas resiste. Resiste porque ensina o que é inútil. Aliás, o teatro não ensina nada que já não saibamos. Todos acreditam na verdadeira mentira do discurso do teatro. Aí reside o projeto discursivo de sua inteligência, a conveniência de sua inconveniência. O teatro comercial até tem seu preço. Alguns repassam, outros recebem. As renúncias e os paraísos fiscais estão aí para uma ou outra porção de coisas, não é mesmo? O espectador mesmo não perde por esperar, pois todos acabam levando a sua torta na cara, como uma piada sem graça, em qualquer momento desse processo sem juízo. O teatro é essencialmente corruptor, jamais corrupto. Essa é sua moral, ainda que física. Só o corpo tem teatro. Teatro sem corpo é radionovela. A radionovela morreu, foi assassinada pela televisão, que está agora mesmo palmilhando para a própria sepultura entre programas de pastores sentimentais, caçadores de marginais e novelinhas de tipinhos mesquinhos. No teatro, os nomes dos culpados estão nos letreiros, nos cartazes, nos programas, nos contratos. O bom teatro é sempre um mau comentário... ou necessário. O teatro é uma frescura de pansexuais letrados e comunistas tímidos para a tomada do poder. No teatro, a tomada do poder contém uma luz plugada, acesa e afinada. Só o cenário stalinista da politicagem poderá fazer sombra à potência dos canhões do teatro. No teatro, o urdimento é de conhecimento de todos. O poder é uma forma cômica de teatro, não fosse um pobre enredo realista. A política do teatro no poder executou e enterrou o teatro político da revolução. O teatro é um trânsito ideológico, um estado de espírito. Do teatro, o que fica nem chega a ser teatro, é arquitetura, literatura, propaganda de pessoas. No teatro, evidentemente, não existe esse tipo de pressão, nem a densidade dessa vida, de forma que as leis de gravidade dessas coisas ficam sujeitas aos sujeitos em cena. Assim, cada gesto deve ser vencido, isolado, significado. Porque só no teatro o escritor pode ser escultor na pessoa de um ator. Os dramaturgos, diretores, cenógrafos, maquiadores, produtores e divulgadores que me perdoem, mas só um daqueles malditos atores é o fundamental para que o teatro se concretize. Para que o teatro se concretize alguma estrutura deverá ser destruída. A atenção do espectador é dispensável. Sua tensão, jamais. No teatro, a loucura é parte da convenção dos personagens acordados, porém há situações em que os que sonham acordados são internados como loucos. O teatro é sempre externo à sociedade; dá-lhe forma, limite, artrite ou força. Pode chover na horta do teatro, mas teatro combina com fome. O teatro pode continuar teoricamente rico quando é praticamente pobre. O teatro é sempre um ensaio. Só no teatro a repetição do erro leva à perfeição da obra. O obra do teatro é intangível e no entanto verificável. Onde houve e há teatro, houve e há civilização, por mais esquisita que seja essa noção. Um caixão de defunto carrega um presunto. Um caixão de teatro transmite um recado. O teatro vem depois da vida. Essa é a ordem natural das coisas. A vida sempre apresenta sua fatura para o dia seguinte. É preciso dar lucro ao capitalismo antes que possamos aproveitá-lo. É como o teatro. A diferença é que o teatro que você paga é construído às suas custas diante de seus olhos, não às suas costas ou às suas culpas. O teatro que acumula tropeça quando salta. É um teatro manco, que prefere a muleta à perna saudável. Só o teatro de bonecos e bonecas pode dar conforto às angústias do futuro. O dos homens, feito para dizer que as coisas não precisam ser assim por incrível que pareçam, esse é escuro. O teatro apaga as luzes da fachada e se prepara para a próxima temporada, quando renasce para morrer em seguida sobre a poeira que repercutiu. No teatro, ao final, vaias ou aplausos. No fim da vida, afinal, silêncio.


Com a colaboração da Companhia Livre de Teatro


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