São Paulo, quarta-feira, 29 de junho de 2005

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"GUERRA DOS MUNDOS"

Diretor abandona os ETs fofinhos em ficção científica baseada no livro homônimo de H.G. Wells

Spielberg atualiza a paranóia americana

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

"Minority Report - A Nova Lei", a parceria anterior da dupla Steven Spielberg-Tom Cruise, acabou consagrada como uma surpreendente antevisão da doutrina Bush e sua política de guerras preventivas, lançadas em setembro daquele mesmo 2002. Não que Spielberg tenha sido tomado por um (profético) elã político. Ao que parece, foi simplesmente atropelado pelos fatos.
Em "Guerra dos Mundos", podemos tirar a prova: não foi Spielberg quem mudou, foi o mundo.
Há 67 anos, um jovem gênio irresponsável chamado Orson Welles levou os americanos à loucura com a transmissão radiofônica de sua adaptação hiper-realista de "Guerra dos Mundos", o clássico de ficção científica de H.G. Wells.
Desesperadas, as pessoas saíam às ruas e lotavam as igrejas, certas de que o planeta estava sendo invadido por marcianos. Três anos depois, o programa de rádio de Welles foi interrompido por um plantão que anunciava a invasão japonesa de Pearl Harbor. Poucos acreditaram. Welles tinha sido atropelado pelos fatos.
Welles acabou levando um merecido puxão de orelha do presidente Roosevelt, que lhe lembrou a historieta do menino pastor que vivia gritando: "É o lobo!" (até que o lobo apareceu de verdade e ninguém acreditou). O mesmo Roosevelt que repetia aos americanos que eles não tinham nada a temer, exceto o próprio medo.
Hoje em dia, o que mais movimenta o mercado americano é a cultura do medo, fonte na qual Spielberg foi beber desta feita: "Guerra dos Mundos" eleva o cinema-catástrofe a um novo patamar, a uma nova escala, a do mundo pós-11 de Setembro. Se a primeira versão cinematográfica da obra de H.G. Wells, realizada por George Pal e Byron Haskin, se inscrevia nas ficções científicas que, nos anos 50, alegorizavam a paranóia da Guerra Fria, esta de Spielberg a reatualiza em tempos da paranóia de guerra ao terror.
Spielberg pode ter trocado seus ETs fofinhos e amigáveis dos anos 80 por alienígenas do mal, verdadeiras máquinas de destruição em massa. Pode ter deixado suas saudáveis famílias interioranas de lado para falar da desagregação familiar, esse que parece ser o tema mais urgente do cinema contemporâneo -seu filme, aliás, pode ser visto como a história de uma paternidade falida que junta os cacos em meio ao caos. Mas, fundamentalmente, Spielberg é o mesmo. Ele continua antenado com as demandas do público americano, essa é sua maestria, um dom nem sempre inofensivo.
Em "Guerra dos Mundos", afora a serialização das catástrofes (quase uma síntese do gênero) e a sucessão de metáforas bíblicas, o que mais chama a atenção no périplo da família Ferrier pelo fim dos tempos é que, enquanto a sociedade civil americana se desmantela rapidamente a um estado de hobbesianismo social (o homem se fazendo lobo do homem), cabe sempre ao Exército restaurar a ordem possível.
Não foi Spielberg quem mudou, foi o mundo, cada vez mais parecido, como diria Godard, com o roteiro de uma ficção ruim. No atentado de 11 de Setembro, podíamos ver a projeção do imaginário americano do cinema-catástrofe se realizar terrivelmente -gênero muito apreciado por alguns dos terroristas que o perpetraram. Num mundo em que as catástrofes e suas imagens proliferam quase cotidianamente, é difícil acreditar que a agressiva e algo duvidosa campanha de lançamento arquitetada para "Guerra dos Mundos" vá lhe assegurar algum impacto junto ao público.


Guerra dos Mundos
War of the Worlds
  
Direção: Steven Spielberg
Produção: EUA, 2005
Com: Tom Cruise, Tim Robbins
Quando: a partir de hoje nos cines Shopping D, Jardim Sul e circuito


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