São Paulo, segunda, 29 de junho de 1998

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Nabuco, craque do século passado em duas posições

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Pura coincidência, mas nesses dias de Copa do Mundo, todos gritando Brasil, Brasil, tive a chance de conhecer melhor um brasileiro do século passado, Joaquim Nabuco. Estava curioso a respeito dele, depois de ler uma biografia escrita por Luis Viana e agora o Senado acaba de republicar o clássico de Nabuco, "Minha Formação". E isso num ano em que foi, magistralmente, relançado pela Topbooks os dois volumes da principal obra de Nabuco, "Um Estadista do Império".
Gilberto Freyre observa, no prefácio, que "Minha Formação" não é um livro autobiográfico no sentido de revelar segredos interiores de seu autor. Freyre acha mesmo que falta a Nabuco, tão anglicizado, uma das características mais valiosas dos ingleses: o "sense of humour", a capacidade mesmo do homem público de rir de si mesmo.
Não tive a mesma sensação de aridez ao travar contato com o livro. Nabuco revela uma auto-ironia quando fala de seus poemas, alguns realmente desanimadores. A ironia reaparece quando descreve os encontros com os seus ídolos literários e as táticas que usava para se desembaraçar de estreantes ansiosos por uma palavra de estímulo.
Se Nabuco fosse tão impermeável ao senso de humor, não iria se inspirar em Tayllerand quando perguntaram-no de que país gostava mais, França ou Inglaterra. Que país se salvaria primeiro se os dois estivessem afogando? A Inglaterra sabe nadar, concluiu.
Nada disso me mobiliza tanto quanto descobrir num homem de pouco mais de 50 anos, no século passado, vivendo problemas comuns aos jovens de hoje, isto é, buscando um sentido para a vida que não estava na Europa nem nos Estados Unidos, na glória literária ou nas ilusões do poder.
Essa questão, que às vezes é respondida por um mergulho na religião, acabou conduzindo Nabuco a ser um defensor dos escravos. No lugar em que muitos encontram a compaixão com o destino humano, ele se concentrou num combate histórico, escolhendo aqueles que iriam precisar dele.
Nabuco não se sentia um político bem-sucedido. Muitas dúvidas aparecem no seu texto: como se interessar pelas questões brasileiras, quando o cenário internacional apresenta, às vezes, tramas tão mais intensas?
"Politicamente, receio ter nascido cosmopolita. Não me seria possível reduzir as minhas faculdades ao serviço de uma religião local, renunciar à qualidade que elas têm de voltar-se, espontaneamente, para fora."
O que pode ter sido um obstáculo em sua carreira era a constante hesitação entre a política e literatura. Muitos responderam bem a esse tipo de dúvida, às vezes com o sacrifício de seu talento. Nabuco parece lúcido a respeito disso e não se enganou, por exemplo, com Rui Barbosa. Para ele, Rui só seria capaz de se expressar esteticamente, se conseguisse emergir da montanha de citações e superposições intelectuais, o que na verdade jamais aconteceu.
Mas é a reflexão sobre a confluência da literatura com política que revela a modernidade de Nabuco. Ele considera o discurso político, com sua dramaticidade e suas tiradas de efeito, um verdadeiro inimigo da poesia. Ele não viveu o bastante para perceber como a literatura, influenciando a política e a própria retórica parlamentar, acabou se livrando de suas lantejoulas. Mas a tese essencial está lá: uma coisa é a arte, outra coisa é o discurso político ou mesmo a erudição.
Apesar das hesitações, Joaquim Nabuco acaba escolhendo os melhores caminhos para investir seu talento. A biografia do pai é um documento indispensável da história. Sua opção pelos escravos, uma espécie de dádiva do século passado. No século 20, a idéia de liberar os proletários dos seus grilhões acabou resultando no pesadelo do socialismo real. O fim da escravidão, além de ter a vantagem da existência concreta, abriu novos caminhos para um capitalismo cruel, mas com grande capacidade de resistir ao longo dos anos. Se fizéssemos uma seleção histórica nacional, desde o descobrimento, Nabuco teria sua escalação garantida.



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