São Paulo, Terça-feira, 29 de Junho de 1999
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ARTIGO
Eu e os Estados Unidos

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Nestes tempos de mundialização, a chamada "hamburger-connection", eis-me aqui a contemplar meu umbigo de provinciano incurável, longe do mar e das grandes metrópoles.
Sinto-me psicologicamente mais próximo de Gil Vicente do que de Camões, ou seja, minha vinculação é menos com o Atlântico do que com a horta. Oliveira Martins, o melhor historiador português, viu na diáspora cosmopolita de Portugal a causa da tragédia marítima e do navio-nação à deriva.
Quando visito São Paulo, prezada city em que vivi dez anos maravilhosos, algum amigo meu inevitavelmente sapeca a seguinte pergunta: "Você já esteve nos Estados Unidos?". Lembro-me da boutade parisiense de Montesquieu: como é que alguém pode ser persa?
Respondo: não, bróder, eu nunca fui aos EUA. Aliás, nem careço de lá ir, porque trago n'alma os EUA. Eu e a torcida do flamengo.
Todos os meus amigos são especialistas em Estados Unidos. Recentemente topei com a originalíssima tese do médico mineiro Silva Melo, para quem a cabeça puritana norte-americana é responsável pela ausência do bidê e da cama de casal.
Os EUA são um país dominado pelas matriarcas matronas, isto é, pelos viragos endolarados. Não é à toa que o marido norte-americano é o mais fiel do mundo.
Gênio brasileiro da clínica, formado na Alemanha, Silva Melo escreveu seu livro ("EUA: Prós e Contras") em 1956, dando atenção ao banheiro, o lugar fundamental da casa, tópico esse que não aparece na "Ética Protestante", de Max Weber.
Segundo Silva Melo, a ausência do bidê, do urinol e da cama de casal é fruto da ginecocracia fundada no horror puritano ao sexo. Tanto que o famoso "flirt", ao invés de prática amorosa, revela o medo da mulher. Na rua, a mulher norte-americana não dá bola para ninguém.
Fazendo a psicologia da latrina, tecendo considerações sobre a mais saudável maneira de defecar (por exemplo: como é que Richelieu limpava o ânus?), Silva Melo ficou decepcionado com a falta de bidê nos hotéis dos Estados Unidos, assim como não viu com bons olhos o desaparecimento da cadeira de balanço e, por incrível que pareça, do alfaiate.
Nos EUA as pessoas se vestem da mesma maneira, observou o facultativo que escreveu sobre a decadência inevitável do império norte-americano com o seu deplorável hábito de conversar ouvindo música. Música ligeira, dizia Theodor Adorno apavorado com o surgimento dos "jukebox".
Infelizmente para a crítica da cultura, Theodor Adorno não leu Luis da Câmara Cascudo: os EUA cometeram o divórcio do talher, separando o garfo e a faca nas refeições, deixando as mãos soltas.
Quem sabe a inegável volúpia pela guerra do homem norte-americano não tem a ver com a supremacia alimentar do sanduíche? Afinal, quem come amansa.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo), entre outros.

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