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ARTIGO
Eu e os Estados Unidos
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Nestes tempos de mundialização, a chamada "hamburger-connection", eis-me aqui a contemplar meu umbigo de provinciano
incurável, longe do mar e das grandes metrópoles.
Sinto-me psicologicamente mais
próximo de Gil Vicente do que de
Camões, ou seja, minha vinculação
é menos com o Atlântico do que
com a horta. Oliveira Martins, o
melhor historiador português, viu
na diáspora cosmopolita de Portugal a causa da tragédia marítima e
do navio-nação à deriva.
Quando visito São Paulo, prezada city em que vivi dez anos maravilhosos, algum amigo meu inevitavelmente sapeca a seguinte pergunta: "Você já esteve nos Estados
Unidos?". Lembro-me da boutade
parisiense de Montesquieu: como
é que alguém pode ser persa?
Respondo: não, bróder, eu nunca
fui aos EUA. Aliás, nem careço de
lá ir, porque trago n'alma os EUA.
Eu e a torcida do flamengo.
Todos os meus amigos são especialistas em Estados Unidos. Recentemente topei com a originalíssima tese do médico mineiro Silva
Melo, para quem a cabeça puritana
norte-americana é responsável pela ausência do bidê e da cama de
casal.
Os EUA são um país dominado
pelas matriarcas matronas, isto é,
pelos viragos endolarados. Não é à
toa que o marido norte-americano
é o mais fiel do mundo.
Gênio brasileiro da clínica, formado na Alemanha, Silva Melo escreveu seu livro ("EUA: Prós e
Contras") em 1956, dando atenção
ao banheiro, o lugar fundamental
da casa, tópico esse que não aparece na "Ética Protestante", de Max
Weber.
Segundo Silva Melo, a ausência
do bidê, do urinol e da cama de casal é fruto da ginecocracia fundada
no horror puritano ao sexo. Tanto
que o famoso "flirt", ao invés de
prática amorosa, revela o medo da
mulher. Na rua, a mulher norte-americana não dá bola para ninguém.
Fazendo a psicologia da latrina,
tecendo considerações sobre a
mais saudável maneira de defecar
(por exemplo: como é que Richelieu limpava o ânus?), Silva Melo
ficou decepcionado com a falta de
bidê nos hotéis dos Estados Unidos, assim como não viu com bons
olhos o desaparecimento da cadeira de balanço e, por incrível que
pareça, do alfaiate.
Nos EUA as pessoas se vestem da
mesma maneira, observou o facultativo que escreveu sobre a decadência inevitável do império norte-americano com o seu deplorável
hábito de conversar ouvindo música. Música ligeira, dizia Theodor
Adorno apavorado com o surgimento dos "jukebox".
Infelizmente para a crítica da cultura, Theodor Adorno não leu Luis
da Câmara Cascudo: os EUA cometeram o divórcio do talher, separando o garfo e a faca nas refeições, deixando as mãos soltas.
Quem sabe a inegável volúpia pela guerra do homem norte-americano não tem a ver com a supremacia alimentar do sanduíche?
Afinal, quem come amansa.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor
de ciências sociais na Universidade Federal de
Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo), entre outros.
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