São Paulo, Terça-feira, 29 de Junho de 1999
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ARNALDO JABOR
O Brasil já perdeu a guerra das estrelas

Saio da "Guerra nas Estrelas" com a cuca fundida. Sinto-me definitivamente conquistado, como o nativo de um planeta distante. Saio hipnotizado, humilhado, não pela "qualidade" tradicional do filme, mas por sua "potência" como produto. Na realidade, saio do cinema com uma inveja brutal, esverdinhada, hepática. "Guerra nas Estrelas" foi feito para ser um show de força de uma cultura celebrando seu triunfo insofismável sobre o mundo atual.
Esse filme ilumina o óbvio, gente boa: perdemos para sempre a guerra pelas estrelas e só nos resta repensar nossos discursos ideológicos sobre nós mesmos. E não falo de cinema, falo de política.
O que me espanta é a energia que está por trás daquilo tudo, não só a energia financeira de faturar bilhões no mundo, mas a massa de trabalho e da "fé americana" que o produziu. O que me assusta é que a tecnologia que faz os Tomahawks é a mesma que faz o entretenimento de Hollywood.
"Guerra nas Estrelas", com toda sua inocência infantil, é um manifesto político. A Força é os Estados Unidos da América. E nós somos aqueles bichos da floresta que fogem, somos os Jar Jar Binks adesistas e otários, tolerados na galáxia americana.
"Que papo nacionalista antigo é esse?", dirão os tecnopopboys, cínicos e entediados. Tudo bem..., mas esse filme é tão "de ponta" que deixa escancarado nosso atraso cultural e político.
Que fazer diante dessa onda irresistível que nos transformou em figurantes de um grande shopping center lúdico? Nada? Que fazer diante desse filme que nos hipnotiza, que nos paga R$ 1.090 na alfândega para entrar aqui e que, com 400 cópias, nos leva US$ 40 milhões em troca de duas horas de emoções coloniais?
Fica claro que os fatos estão correndo mais rápidos que as interpretações, fica claro que nosso arsenal teórico de "resistência" ficou ridículo, diante da velocidade dessas coisas americanas.
Essa radical imposição de uma nova vida está a exigir pensadores novos, além de críticos de cinema, além de franceses "bodeados", tipo "ancien régime", além de Virilios e de Bourdieus, está a exigir discursos mais profundos que melancolias românticas ou depressões acadêmicas evocando o "Angelus Novus", de Klee.
Precisamos pensar a partir de uma derrota cultural, para encontrar um espaço de sobrevivência nacional, como em um "pós-guerra". Sei que essas são "idéias impensáveis", que provocam angústia e desconfiança, mas estamos diante de fatos grávidos, novíssimos, viróticos, infecciosos, que não são comandados por ninguém, mas por um grande monstro mercantil "coisificado". No Brasil, vemos algumas atitudes típicas:
* A atitude regressiva - "Como era boa a nossa taba!...". Uma fuga para trás, uma negação da complexidade desse caos, em favor de categorias antigas. (Será que só nos restará o "forró", o precário, a teimosia "armorial", o apego desesperado a nossas pobres tradições? Será que só nos resta a autenticidade da miséria? Só a miséria seria brasileira?).
* O entreguismo deslumbrado, a adesão fascinada a esse show pós-industrial.
* O rancor paralisado das academias, se limitando a analisar o triunfo de Lucas e da sua América, como a "última fase do turbo-capitalismo fetichista".
* O discurso meio-tucano de adesão crítica, com a velada esperança de comer as migalhas que caem na mesa.
* Uma posição antropofágica indolente que já está nos matando de indigestão.
* Uma melancólica e doce torre de marfim, uma depressão iluminada.
* O "dane-se" puro e simples.
No entanto, como vamos nos comportar diante dessa definitiva encrenca do país entre dois pólos: o shopping center e o favelão, entre as bolhas de consumo pequeno-burguês e a miséria imunda das periferias?
Há uma idéia de mundo por trás de nossas bandeiras ideológicas que não serve mais como moradia da verdade.
Há um humanismo "fesandé" que só serve para nos enganar e consolar.
Vendo as galáxias explodindo, penso no Itamar Franco, no Brizola, nos líderes maoístas do MST, dizendo que vão derrubar o capitalismo com enxadas, e tenho vontade de sentar no meio-fio e chorar lágrimas de esguicho.
Tenho vontade de chorar, vendo o pensamento de "resistência" ingênua que continua a ver o futuro do Brasil como um sebastianismo iluminado, uma harmonia a ser conquistada por um "povo autônomo".
Morreu para sempre o sonho de autonomia. Esse discurso falido que ainda nos ilude e orienta tem de ser atualizado: futuro, "coisas nossas", identidade. Mesmo que a saída fosse o mais radical fundamentalismo nacionalista, nós não teríamos matéria religiosa, nem tradição milenar, nem miséria sagrada, nada que desse "liga" a algum xiitismo.
Nós perdemos a guerra das estrelas não para os homens, mas para as coisas. Sinto-me feito aqueles japoneses que continuaram lutando sozinhos depois do fim da Segunda Guerra.
Só de uma coisa eu tenho certeza: todo discurso político que não levar em conta a derrota da esperança romântica será arcaico e ridículo. Nosso pensamento político-cultural continua a produzir apenas espasmos do insolúvel. Dirá de novo meu leitor tecnopop: "Mas todo esse papo-cabeça por causa de um filmezinho comercial?".
Sim. Pois o mais assustador é justamente a "inocência" infantil do filme, comparada à imensa seriedade "ideo-mercadológica" do empreendimento.
Só nos resta a esperança maluca de que, após este ciclo de voracidade do capitalismo global, surja uma "saciedade", uma "barriga cheia" por parte dos tecnoconquistadores, só nos resta a esperança de que o mercado, abarrotado de lucros, demande algum desenvolvimento da miséria para um novo tempo de consumismo. A esperança é que o fim da miséria venha a ser uma necessidade de mercado. Será que, um dia, vão achar que os excluídos também podem dar lucro? Será que um dia descerão novos "peaces corps" em nosso lixão, para "civilizar-nos"? Este é um artigo sem clareza, sem conclusão.
Que estranha "terceira coisa" vai surgir dessa mistura de miséria com tecnologia que cada vez mais virou nosso país?
Que estranhos bichos vão nascer da liga entre lama e informática, bosta e digitalização, ratos, barracos e naves espaciais? Teremos o que nesse novo tempo?
Teremos uma tecnomiséria? Um "tecno-analfabetismo"? Uma "tecnofome"? O que será? Que a Força esteja conosco!


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