São Paulo, sábado, 29 de julho de 2000


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LIVROS/LANÇAMENTOS

"DIÁRIO DE UMA EXPEDIÇÃO"
Notas de um Euclides pré-'Sertões'

MARIO SERGIO CONTI
DA REPORTAGEM LOCAL

°Euclides da Cunha era um repórter tolo. Aos 31 anos, sem qualquer experiência no metiê, ele foi, em agosto de 1897, ao sertão da Bahia para cobrir a guerra de Canudos. Os seguidores de Antônio Vicente Mendes Maciel, o beato Bom Jesus Conselheiro, haviam derrotado a terceira expedição do Exército encarregada de subjugá-los, provocando uma crise no governo republicano. A imprensa, arma letrada da elite, criou uma onda de histeria, classificando os revoltosos de bárbaros a serviço da monarquia.
O jovem engenheiro militar, republicano fervoroso, foi peça-chave na disseminação da histeria, cujo objetivo era conseguir mais verbas, soldados e armamentos para montar a quarta expedição contra o levante. Em março e julho daquele ano, Euclides publicou em "O Estado de S. Paulo" duas partes de um artigo intitulado "A nossa Vendéia". Nele, igualava a revolta em Canudos à reação monarquista de 1793, na qual nobres e camponeses católicos tentaram estancar a Revolução Francesa. Com a analogia, sustentava uma grossa mistificação ideológica e política: o regime republicano corria perigo de vida.
O artigo mostra um intelectual de gabinete ávido por expor seus conhecimentos de geologia, botânica e geografia. São conhecimentos precários, que o levam a comparar a paisagem física do sertão à da Espanha e à de Cuba. Solene e pomposo, inspirando-se na verborragia oca de Ruy Barbosa e Coelho Neto, Euclides sataniza os inimigos, "a horda de fanatizados sequazes de Antônio Conselheiro, o mais sério inimigo das forças republicanas".
Nomeado correspondente do jornal, Euclides viajou à Bahia como integrante do Estado-Maior do ministro da Guerra. De lá mandou as reportagens e telegramas reunidos no livro "Diário de uma Expedição", meticulosamente organizado e apresentado por Walnice Nogueira Galvão.
Jornalista que sai a campo para provar uma tese (Canudos é a barbárie, e deve ser esmagado pelo Exército, agente da civilização), manda reportagens de um subjetivismo tosco e ingênuo, impregnadas de preconceitos, intoxicadas de subliteratice, mais preocupadas em antevir a vitória do que em contar o que estava acontecendo. A primeira delas assim termina:
"Que a nossa Vendéia se embuce num largo manto tenebroso de nuvens, avultando além como a sombra de uma emboscada entre os deslumbramentos do grande dia tropical que nos alenta. Rompê-lo-á, breve, a fulguração da metralha, de envolta num cintilar vivíssimo de espadas... A República é imortal!".
E o que acontecia na frente do repórter era pavoroso. "Diversos soldados que inquiri afirmam -surpreendidos, que o jagunço degolado não verte uma xícara de sangue", escreve Euclides (que não sabia usar vírgulas). Os soldados degolavam os jagunços antes ou depois de eles se renderem? O repórter não faz a pergunta óbvia, talvez por antever a resposta: o glorioso Exército republicano de fato não gostava de fazer prisioneiros, preferindo degolá-los.
A realidade começa a se impor ao repórter quando ele assiste o interrogatório de um jagunço de 14 anos. Pergunta-se ao adolescente se o Conselheiro fazia milagres, e ele responde que não. Indaga-se se o beato garantia que seus seguidores mortos em combate ressuscitariam, e o garoto nega novamente. Quando por fim é perguntado ao pequeno jagunço o que o Conselheiro prometia aos que morriam em defesa de Canudos, Euclides considera "absolutamente inesperada" a sua resposta: "salvar a alma".
O repórter comenta em seguida, candidamente: "Estas revelações feitas diante de muitas testemunhas têm para mim um valor inestimável; não mentem, não sofismam e não iludem, naquela idade, as almas ingênuas dos rudes filhos do sertão". O que quase equivale a duvidar de que os "fanáticos" e seu líder fossem tão bárbaros quanto pintava a propaganda jornalística republicana.
A candura de Euclides aparece em outros contextos. Num deles, ela beira o ridículo, pois o jornalista quase pede desculpas aos leitores por encher linguiça. Ele escreveu 11 reportagens em Salvador antes de seguir para o sertão. Na derradeira, informa: "Será esta a última carta que escreverei deste ponto aonde, involuntariamente, fiquei retido, lutando com uma falta de assunto extraordinária, que já deve ter sido percebida".

"Ajagunçar"
Ele chega ao sertão ainda como um idealista dogmático. Até nos trajes ele destoa do ambiente. "Dos nossos vestuários incontestavelmente destacava-se o do distinto colega que, chegando ainda anteontem, se apresentou de vistosas botas de verniz, calça branca, camisa de fina seda e chapéu de fina palha", escreve sobre Euclides o correspondente de "A Notícia", Alfredo Silva.
Euclides também nota a mudança em antigos colegas da Escola Militar. Um deles o abraça, mas o repórter não o reconhece. "Vi um homem estranho, de barba inculta e crescida, rosto pálido e tostado, voz áspera, vestindo bombachas enormes, coberto de largo chapéu desabado", escreve Euclides, descrevendo o encontro. Ele cria o verbo "ajagunçar" para descrever o fenômeno: jagunços e soldados, bárbaros e civilizados estão cada vez mais parecidos.
No sertão, a transformação do repórter se acelera. Ele toma contato com "um quadro absolutamente novo; uma flora inteiramente estranha e impressionadora". Dá-se conta de que sua cultura livresca é inútil: "Nunca lamentei tanto a ausência de uma educação prática e sólida e nunca reconheci tanto a inutilidade das maravilhas teóricas com as quais nos iludimos nos tempos acadêmicos". Admite que escreveu bobagens: "A influência do Conselheiro é mais ampla do que supunha".
Ele passa a se corrigir sofregamente. Ao chegar a Monte Santo, descreve a povoação com entusiasmo. "Não conheço nenhuma de aspecto mais pitoresco que o deste arraial humilde perdido no meio dos sertões (...) com as suas casas brancas e pequenas, caindo por um plano de inclinação insensível até a planície vastíssima."
Na reportagem do dia seguinte, o jornalista volta atrás. Agora, "Monte Santo é simplesmente repugnante". As ruas do lugarejo "são como que imensos encanamentos de esgoto, sem abóbadas, destruídos. Custa a admitir a possibilidade de vida em tal meio estreito, exíguo, miserável em que se comprimem agora 2.000 soldados". As mulheres que rodeiam os soldados formam "uma multidão rebarbativa de megeras esquálidas e feias na maioria fúrias que encalçam o exército".
O jornalista muda também a maneira de encarar os revoltosos. "Tem a mais sólida, a mais robusta têmpera essa gente indomável!", entusiasma-se. Na sua última reportagem do campo de batalha, os "fanáticos" de ontem são chamados de "rudes patrícios transviados", que é preciso incorporar "amanhã, em breve, definitivamente, à nossa existência política".
Euclides da Cunha foi um mau repórter até o fim: deixou Canudos dois dias antes da tomada do arraial. Como nunca explicou por que não cobriu a vitória definitiva, pela qual tanto ansiava, especula-se que estava doente. Ou então que não aguentou ver o desenlace selvagem. Sem testemunhar a carnificina, ainda assim a imortalizou em "Os Sertões":
"Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados".
"Diário de uma Expedição" não é de maneira alguma um modelo de jornalismo. Ele é outra coisa: a demonstração de como um repórter tolo pode aprender com a realidade e pode transformar seu bloco de anotações numa obra do porte de "Os Sertões".


Diário de uma Expedição     Autor: Euclides da Cunha Organização: Walnice Nogueira Galvão Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 24,50 (304 págs.)




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