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LIVROS/LANÇAMENTOS
"DIÁRIO DE UMA EXPEDIÇÃO"
Notas de um Euclides pré-'Sertões'
MARIO SERGIO CONTI
DA REPORTAGEM LOCAL
°Euclides da Cunha era um
repórter tolo. Aos 31 anos,
sem qualquer experiência no metiê, ele foi, em agosto de 1897, ao
sertão da Bahia para cobrir a
guerra de Canudos. Os seguidores
de Antônio Vicente Mendes Maciel, o beato Bom Jesus Conselheiro, haviam derrotado a terceira
expedição do Exército encarregada de subjugá-los, provocando
uma crise no governo republicano. A imprensa, arma letrada da
elite, criou uma onda de histeria,
classificando os revoltosos de bárbaros a serviço da monarquia.
O jovem engenheiro militar, republicano fervoroso, foi peça-chave na disseminação da histeria, cujo objetivo era conseguir
mais verbas, soldados e armamentos para montar a quarta expedição contra o levante. Em
março e julho daquele ano, Euclides publicou em "O Estado de S.
Paulo" duas partes de um artigo
intitulado "A nossa Vendéia". Nele, igualava a revolta em Canudos
à reação monarquista de 1793, na
qual nobres e camponeses católicos tentaram estancar a Revolução Francesa. Com a analogia,
sustentava uma grossa mistificação ideológica e política: o regime
republicano corria perigo de vida.
O artigo mostra um intelectual
de gabinete ávido por expor seus
conhecimentos de geologia, botânica e geografia. São conhecimentos precários, que o levam a comparar a paisagem física do sertão à
da Espanha e à de Cuba. Solene e
pomposo, inspirando-se na verborragia oca de Ruy Barbosa e
Coelho Neto, Euclides sataniza os
inimigos, "a horda de fanatizados
sequazes de Antônio Conselheiro,
o mais sério inimigo das forças republicanas".
Nomeado correspondente do
jornal, Euclides viajou à Bahia como integrante do Estado-Maior
do ministro da Guerra. De lá
mandou as reportagens e telegramas reunidos no livro "Diário de
uma Expedição", meticulosamente organizado e apresentado
por Walnice Nogueira Galvão.
Jornalista que sai a campo para
provar uma tese (Canudos é a
barbárie, e deve ser esmagado pelo Exército, agente da civilização),
manda reportagens de um subjetivismo tosco e ingênuo, impregnadas de preconceitos, intoxicadas de subliteratice, mais preocupadas em antevir a vitória do que
em contar o que estava acontecendo. A primeira delas assim termina:
"Que a nossa Vendéia se embuce num largo manto tenebroso de
nuvens, avultando além como a
sombra de uma emboscada entre
os deslumbramentos do grande
dia tropical que nos alenta. Rompê-lo-á, breve, a fulguração da
metralha, de envolta num cintilar
vivíssimo de espadas... A República é imortal!".
E o que acontecia na frente do
repórter era pavoroso. "Diversos
soldados que inquiri afirmam
-surpreendidos, que o jagunço
degolado não verte uma xícara de
sangue", escreve Euclides (que
não sabia usar vírgulas). Os soldados degolavam os jagunços antes
ou depois de eles se renderem? O
repórter não faz a pergunta óbvia,
talvez por antever a resposta: o
glorioso Exército republicano de
fato não gostava de fazer prisioneiros, preferindo degolá-los.
A realidade começa a se impor
ao repórter quando ele assiste o
interrogatório de um jagunço de
14 anos. Pergunta-se ao adolescente se o Conselheiro fazia milagres, e ele responde que não. Indaga-se se o beato garantia que
seus seguidores mortos em combate ressuscitariam, e o garoto nega novamente. Quando por fim é
perguntado ao pequeno jagunço
o que o Conselheiro prometia aos
que morriam em defesa de Canudos, Euclides considera "absolutamente inesperada" a sua resposta: "salvar a alma".
O repórter comenta em seguida,
candidamente: "Estas revelações
feitas diante de muitas testemunhas têm para mim um valor
inestimável; não mentem, não sofismam e não iludem, naquela
idade, as almas ingênuas dos rudes filhos do sertão". O que quase
equivale a duvidar de que os "fanáticos" e seu líder fossem tão
bárbaros quanto pintava a propaganda jornalística republicana.
A candura de Euclides aparece
em outros contextos. Num deles,
ela beira o ridículo, pois o jornalista quase pede desculpas aos leitores por encher linguiça. Ele escreveu 11 reportagens em Salvador antes de seguir para o sertão.
Na derradeira, informa: "Será esta
a última carta que escreverei deste
ponto aonde, involuntariamente,
fiquei retido, lutando com uma
falta de assunto extraordinária,
que já deve ter sido percebida".
"Ajagunçar"
Ele chega ao sertão ainda como
um idealista dogmático. Até nos
trajes ele destoa do ambiente.
"Dos nossos vestuários incontestavelmente destacava-se o do distinto colega que, chegando ainda
anteontem, se apresentou de vistosas botas de verniz, calça branca, camisa de fina seda e chapéu
de fina palha", escreve sobre Euclides o correspondente de "A
Notícia", Alfredo Silva.
Euclides também nota a mudança em antigos colegas da Escola Militar. Um deles o abraça,
mas o repórter não o reconhece.
"Vi um homem estranho, de barba inculta e crescida, rosto pálido
e tostado, voz áspera, vestindo
bombachas enormes, coberto de
largo chapéu desabado", escreve
Euclides, descrevendo o encontro. Ele cria o verbo "ajagunçar"
para descrever o fenômeno: jagunços e soldados, bárbaros e civilizados estão cada vez mais parecidos.
No sertão, a transformação do
repórter se acelera. Ele toma contato com "um quadro absolutamente novo; uma flora inteiramente estranha e impressionadora". Dá-se conta de que sua cultura livresca é inútil: "Nunca lamentei tanto a ausência de uma educação prática e sólida e nunca reconheci tanto a inutilidade das maravilhas teóricas com as quais nos
iludimos nos tempos acadêmicos". Admite que escreveu bobagens: "A influência do Conselheiro é mais ampla do que supunha".
Ele passa a se corrigir sofregamente. Ao chegar a Monte Santo,
descreve a povoação com entusiasmo. "Não conheço nenhuma
de aspecto mais pitoresco que o
deste arraial humilde perdido no
meio dos sertões (...) com as suas
casas brancas e pequenas, caindo
por um plano de inclinação insensível até a planície vastíssima."
Na reportagem do dia seguinte,
o jornalista volta atrás. Agora,
"Monte Santo é simplesmente repugnante". As ruas do lugarejo
"são como que imensos encanamentos de esgoto, sem abóbadas,
destruídos. Custa a admitir a possibilidade de vida em tal meio estreito, exíguo, miserável em que
se comprimem agora 2.000 soldados". As mulheres que rodeiam os
soldados formam "uma multidão
rebarbativa de megeras esquálidas e feias na maioria fúrias que
encalçam o exército".
O jornalista muda também a
maneira de encarar os revoltosos.
"Tem a mais sólida, a mais robusta têmpera essa gente indomável!", entusiasma-se. Na sua última reportagem do campo de batalha, os "fanáticos" de ontem são
chamados de "rudes patrícios
transviados", que é preciso incorporar "amanhã, em breve, definitivamente, à nossa existência política".
Euclides da Cunha foi um mau
repórter até o fim: deixou Canudos dois dias antes da tomada do
arraial. Como nunca explicou por
que não cobriu a vitória definitiva, pela qual tanto ansiava, especula-se que estava doente. Ou então que não aguentou ver o desenlace selvagem. Sem testemunhar
a carnificina, ainda assim a imortalizou em "Os Sertões":
"Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo.
Expugnado palmo a palmo, na
precisão integral do termo, caiu
no dia 5, ao entardecer, quando
caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram
quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na
frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados".
"Diário de uma Expedição" não
é de maneira alguma um modelo
de jornalismo. Ele é outra coisa: a
demonstração de como um repórter tolo pode aprender com a
realidade e pode transformar seu
bloco de anotações numa obra do
porte de "Os Sertões".
Diário de uma Expedição
Autor: Euclides da Cunha
Organização: Walnice Nogueira Galvão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24,50 (304 págs.)
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