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ARTES CÊNICAS
Integrantes de quatro montagens que fizeram parte do festival discutem relações entre insanidade e arte
Loucura é elo entre peças em Rio Preto
VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL A S. JOSÉ DO RIO PRETO
A loucura escapou do confinamento e transfigurou-se em matéria-prima das artes cênicas durante o Festival Internacional de
Teatro de São José do Rio Preto
(SP), que terminou ontem.
As idéias do francês Antonin
Artaud, como eixo, e a homenagem ao ator Rubens Corrêa fizeram desta edição um passeio propício aos diversos estados do ser.
A Folha reuniu o elenco de quatro espetáculos para pincelar a relação do teatro com a loucura.
Participaram do encontro artistas de "Bispo", monólogo com
João Miguel (Salvador), inspirado
em Arthur Bispo do Rosário;
"Cartas de Rodez", com a Companhia Amok de Teatro (Rio), sobre Artaud; "Hysteria", com o
Grupo XIX de Teatro (SP), sobre a
condição da mulher no século 19;
e "Banqete", com a Boa Companhia (Campinas), de Qorpo Santo, sobre as "fomes" do homem.
Sob mediação do crítico da Folha Sergio Salvia Coelho, a conversa revelou alguns pontos comuns. A loucura, por exemplo,
pode transbordar em arte quando
encontra um interlocutor.
Em "Cartas de Rodez", o doutor
Ferdiére trata de Artaud com incentivo que depois vira obsessão
em tentar lhe corrigir os rumos de
sua escrita, justamente a âncora
possível para a cura.
Em "Bispo", uma enfermeira é
musa inspiradora de boa parte
das criações de Bispo do Rosário
nas artes plásticas.
Já em "Hysteria", as cinco mulheres do século retrasado não são
exatamente artistas, ainda que
uma delas recorra à poesia, mas
têm no doutor Mendes o elo com
a realidade extramuro.
Curiosamente, os porta-vozes
da medicina, por assim dizer, são
sempre sujeitos ocultos em cena.
Em Artaud, há as cartas, extratos literários em que elabora suas
idéias. Em Qorpo Santo, a transgressão gramatical, a começar pelo nome artístico.
Bispo do Rosário, em seus "delírios místicos", constrói mundo à
parte num pavilhão com centenas
de objetos em miniatura.
Uma das mulheres de "Hysteria" recorre ao "caderno goiabada", em que reveza receitas de bolo e desejos inconfessáveis.
"Havia prontuários médicos
que diagnosticavam "vivacidade
precoce" como doença", observa a
atriz Juliana Sanches, do Grupo
XIX. A loucura brota no seio da
sociedade com estigmas e preconceitos históricos de praxe.
"Por que, afinal, ela é tema recorrente no teatro?", questiona
Coelho. "Como toda arte, esta
também serve como veículo para
que o louco atinja lugares saudáveis. No mundo ocidental, o
doente perdeu a ligação com o
místico e o sagrado", pondera o
ator Stephane Brodt, que protagoniza "Cartas de Rodez".
Entre as fronteiras de aparições
e aparências, Brodt afirma que o
teatro "religa com coisas perdidas, refaz a vida, depois refaz o
corpo, como dizia Etienne Decroux (mestre da mímica com
quem Artaud trabalhou)".
Segundo o diretor Luiz Fernando Marques, de "Hysteria", a loucura precisa ser abordada no plano da memória, e não no momento da crispação. "Sem memória
não há loucura." Daí sua rejeição
em desenvolver pesquisa de campo, ao contrário de "Bispo" e
"Banquete", que levaram seus
projetos a hospitais psiquiátricos.
"Os doentes encararam como
um banquete de fato e comeram à
mesa do cenário, enquanto interpretávamos", relembra Moacir
Ferraz, da Boa Companhia.
"Como ser desejante, o homem
busca sua condição mais pura,
quer movido pelo estômago, quer
pelo coração", completa o colega
Daves Otani.
Brodt acrescenta que Artaud dizia que mãos e pés ofuscam o
tronco na expressão do corpo. "O
tronco sou eu, os membros são
meus", afirmava.
O baiano João Miguel, que carrega a sina do palhaço Magal há 12
anos, diz se esquivar da caricatura
do louco de pés tortos e mãos trêmulas. Ele persegue a língua secreta e ancestral de Rosário por
meio da ação física e da memória.
"Cada um busca sua explicação
para a loucura, elabora o devaneio com o método que lhe convém", afirma Otani.
O filósofo francês Louis Althusser, que estrangulou sua mulher
após uma crise de psicose maníaco-depressiva -foi interpretado
por Rubens Corrêa em "O Futuro
Dura Muito Pouco" (94)- dizia
que, se olhássemos para as crianças como os adultos entreolham-se, então todas seriam loucas.
Valmir Santos e Sergio Salvia Coelho
viajaram a convite do festival
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