São Paulo, segunda-feira, 29 de julho de 2002

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ARTES CÊNICAS

Integrantes de quatro montagens que fizeram parte do festival discutem relações entre insanidade e arte

Loucura é elo entre peças em Rio Preto

VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL A S. JOSÉ DO RIO PRETO

A loucura escapou do confinamento e transfigurou-se em matéria-prima das artes cênicas durante o Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (SP), que terminou ontem.
As idéias do francês Antonin Artaud, como eixo, e a homenagem ao ator Rubens Corrêa fizeram desta edição um passeio propício aos diversos estados do ser.
A Folha reuniu o elenco de quatro espetáculos para pincelar a relação do teatro com a loucura.
Participaram do encontro artistas de "Bispo", monólogo com João Miguel (Salvador), inspirado em Arthur Bispo do Rosário; "Cartas de Rodez", com a Companhia Amok de Teatro (Rio), sobre Artaud; "Hysteria", com o Grupo XIX de Teatro (SP), sobre a condição da mulher no século 19; e "Banqete", com a Boa Companhia (Campinas), de Qorpo Santo, sobre as "fomes" do homem.
Sob mediação do crítico da Folha Sergio Salvia Coelho, a conversa revelou alguns pontos comuns. A loucura, por exemplo, pode transbordar em arte quando encontra um interlocutor.
Em "Cartas de Rodez", o doutor Ferdiére trata de Artaud com incentivo que depois vira obsessão em tentar lhe corrigir os rumos de sua escrita, justamente a âncora possível para a cura.
Em "Bispo", uma enfermeira é musa inspiradora de boa parte das criações de Bispo do Rosário nas artes plásticas.
Já em "Hysteria", as cinco mulheres do século retrasado não são exatamente artistas, ainda que uma delas recorra à poesia, mas têm no doutor Mendes o elo com a realidade extramuro.
Curiosamente, os porta-vozes da medicina, por assim dizer, são sempre sujeitos ocultos em cena.
Em Artaud, há as cartas, extratos literários em que elabora suas idéias. Em Qorpo Santo, a transgressão gramatical, a começar pelo nome artístico.
Bispo do Rosário, em seus "delírios místicos", constrói mundo à parte num pavilhão com centenas de objetos em miniatura.
Uma das mulheres de "Hysteria" recorre ao "caderno goiabada", em que reveza receitas de bolo e desejos inconfessáveis.
"Havia prontuários médicos que diagnosticavam "vivacidade precoce" como doença", observa a atriz Juliana Sanches, do Grupo XIX. A loucura brota no seio da sociedade com estigmas e preconceitos históricos de praxe.
"Por que, afinal, ela é tema recorrente no teatro?", questiona Coelho. "Como toda arte, esta também serve como veículo para que o louco atinja lugares saudáveis. No mundo ocidental, o doente perdeu a ligação com o místico e o sagrado", pondera o ator Stephane Brodt, que protagoniza "Cartas de Rodez".
Entre as fronteiras de aparições e aparências, Brodt afirma que o teatro "religa com coisas perdidas, refaz a vida, depois refaz o corpo, como dizia Etienne Decroux (mestre da mímica com quem Artaud trabalhou)".
Segundo o diretor Luiz Fernando Marques, de "Hysteria", a loucura precisa ser abordada no plano da memória, e não no momento da crispação. "Sem memória não há loucura." Daí sua rejeição em desenvolver pesquisa de campo, ao contrário de "Bispo" e "Banquete", que levaram seus projetos a hospitais psiquiátricos.
"Os doentes encararam como um banquete de fato e comeram à mesa do cenário, enquanto interpretávamos", relembra Moacir Ferraz, da Boa Companhia.
"Como ser desejante, o homem busca sua condição mais pura, quer movido pelo estômago, quer pelo coração", completa o colega Daves Otani.
Brodt acrescenta que Artaud dizia que mãos e pés ofuscam o tronco na expressão do corpo. "O tronco sou eu, os membros são meus", afirmava.
O baiano João Miguel, que carrega a sina do palhaço Magal há 12 anos, diz se esquivar da caricatura do louco de pés tortos e mãos trêmulas. Ele persegue a língua secreta e ancestral de Rosário por meio da ação física e da memória.
"Cada um busca sua explicação para a loucura, elabora o devaneio com o método que lhe convém", afirma Otani.
O filósofo francês Louis Althusser, que estrangulou sua mulher após uma crise de psicose maníaco-depressiva -foi interpretado por Rubens Corrêa em "O Futuro Dura Muito Pouco" (94)- dizia que, se olhássemos para as crianças como os adultos entreolham-se, então todas seriam loucas.


Valmir Santos e Sergio Salvia Coelho viajaram a convite do festival



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