São Paulo, sábado, 29 de julho de 2006

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Crítica/coletânea

Contos de Nelson de Oliveira investem no sobrenatural

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Se há um adjetivo largamente utilizado neste livro e que apresenta força expressiva capaz de, ao mesmo tempo, caracterizar todas suas histórias, este adjetivo é "sobrenatural". Sua acepção encontra eco em palavras de sentido assemelhado também empregadas com freqüência na obra, como "irreal", "angustiante", em geral implicando algo vizinho dos pesadelos. Isso quer dizer que essas narrativas do paulista Nelson de Oliveira não têm o pé fincado numa realidade facilmente reconhecível. Não se deduz daí que não haja realidade, mas sim que esta seja dotada de uma espécie de qualidade polimorfa. Os personagens podem configurar-se como uma coisa ou outra; tome-se a protagonista de "Senhora aos Domingos", por exemplo, que tanto pode ser uma respeitável velhota que sonha ser uma indigente ou uma indigente que sonha ser uma respeitável velhota. Não são apenas os personagens que exibem esse caráter fluido; também o tempo e mesmo o espaço, com seus contornos imprecisos, parecem equilibrar-se num frágil acordo com o real. Esses elementos conferem às histórias o tom sobrenatural, fortemente condicionado ao clima onírico (ou pesadelar), de coisa fora do eixo. Embora publicado agora, este livro é composto por histórias do início da carreira do escritor. Conforme explica Oliveira, em nota final, elas foram redigidas em torno de 1989. O alentado conjunto inicial, constituído de 45 contos, teve de ser desmembrado. As primeiras reuniões originaram os bons volumes "Naquela Época Tínhamos um Gato" e "Treze". "Algum Lugar em Parte Alguma" é, então, a quarta e última parte dessas "Fábulas" (o título genérico é do autor) de quase duas décadas atrás. Como fruto derradeiro, o livro padece da sina de ser "raspa de tacho". Há aqui exemplos do melhor que Oliveira pode oferecer-nos em termos artísticos, como o citado "Senhora aos Domingos" ou "Pobre Patinho Frank, Cheio de Si e de Vento", lado a lado com narrativas bem menos felizes, como "Marli" e o conto epônimo "Algum Lugar em Parte Alguma". Nestas últimas é mais comum perceber certo desleixo de estilo, uso desnecessário de locuções desgastadas ("desabalada carreira"), aproximações esdrúxulas ("marchava com a infinita lentidão dos professores e dos condenados", "com sua franja de filme de gângster francês") e até frases herméticas ("não o tipo de gozo estético muito próximo de uma religiosidade informe") ou sem sentido ("os objetos e suas respectivas sombras guardavam ainda o calor do manuseio"; como as sombras podem guardar o "calor do manuseio"?). É claro que o investimento no sobrenatural é tanto mais eficiente quanto mais conta com o esteio do rigor estilístico, como é o caso do excelente "Os Antepassados, os Porcos", em que um velho casarão familiar é tomado por uma manada de suínos. Essa quase novela que lembra Cortázar sustentaria, por si, um volume inteiro. Do jeito como está, porém, o leitor é infelizmente obrigado a separar o joio do trigo.

ALGUM LUGAR EM PARTE ALGUMA
  
Autor: Nelson de Oliveira
Editora: Record
Quanto: R$ 41,90 (288 págs.)
Lançamento: quarta-feira, às 19h, na Livraria da Vila (r. Fradique Coutinho, 915, SP, tel. 0/xx/11/3814-5811)


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