São Paulo, quinta-feira, 29 de agosto de 2002

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GASTRONOMIA

Uma revista gostosa de ler

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

A revista americana "New Yorker", de vez em quando, solta um número especial sobre comida e o número que está nas bancas, de 19 de agosto, está ótimo.
Há sempre uma pequena crítica de restaurantes, e temos o Bouley, 120 West Broadway (tel. 00/xx/1/ 212/9642-5225), que, por estas incoerências do destino, depois que mudou de lugar, não está se enchendo de gente faminta.
Já foi tido como um dos melhores da cidade, se não o melhor, e atualmente anda meio vazio. É um lugar que pede gente, tem pé-direito alto e abobadado, o que causa o desagradável fenômeno acústico de se escutar mesmo as conversas sussurradas de mesas distantes. O que, para mim, seria um prato cheio, mas não o é para todo o mundo, tenho que concordar. A comida continua boa. O crítico comenta que os ingredientes são bem dos anos 90, feitos para impactar, tocar os sentidos, madeleines moderníssimas e exóticas, novas experiências, novas emoções, com o resultado quase sempre inevitável de uma boa indigestão. Mas, como Boulud é um cozinheiro excepcional, as misturas se combinam sem atrito, apesar de os nomes não baterem com ritmo nos nossos paladares. Há as entradinhas de verão, que parecem demodées, uma colher de chá de siri debaixo de uma gelatina de gaspacho, coberta por um bocado de abacate, ou camadas de manga, lagosta, papaia, alcachofra trufada embrulhadas em presunto cru. Eca, dirão alguns, e a mandioquinha frita?
Quem diria, aqueles americanos dos hambúrgueres e das tortas de maçã comem destas gororobas com grande alegria, mas não são americanos de verdade, são nova-iorquinos, o que é uma raça diferente. "You've come a long way, baby!", como diriam os cigarros Virginia.
Quando estivemos no Midwest, fomos convidados a jantar numa casa típica americana, ou típica do Midwest, com ingredientes frescos, a mulher cozinhando etc. e tal. Na hora da sobremesa, um dos convidados, fazendeiro amigo dos anfitriões, com os olhos úmidos, agradeceu a tigela de translúcidos pêssegos que veio à mesa. "Não acredito, vocês estão nos servindo pêssegos brancos!"
Na "New Yorker" de agosto, o artigo, "O Detetive das Frutas", de John Seabrook, fala de David Karp, um homem que corre os Estados Unidos atrás de frutas exóticas, ou em extinção, ou simplesmente boas (como o pêssego branco). A reportagem é naquele tom de novo jornalismo em que o repórter é capaz de acompanhar o entrevistado por um ano e depois rever a vida dele em mínimos detalhes em cinco laudas.
Atualmente comer uma fruta com o gosto que ela tem quando colhida da árvore é um feito, e a missão de Karp é trazê-lo de volta. Mantém correspondência ferrada com pesquisadores como ele no mundo inteiro, compra livros sobre o assunto, escreve em jornais. Na verdade, a diversidade étnica americana não é espelhada nos supermercados e as frutas preferidas dos americanos, em ordem decrescente, são as bananas (!), maçãs, melões, laranjas, uvas, grapefruits, morangos, pêssegos e pêras.
Karp , o detetive maluco quer, além de tudo, descobrir qual será o próximo kiwi. No momento, desconfia da pitaya, que se assemelha por fora com o maracujá doce, ou com o figo-da-índia (Hilocereus undatus). É vendida aqui no Brasil como colombiana e, na última estação, apareceu numa versão brasileira, vermelha, com asas, excrescências, uma alcachofra rubra, coisa linda de tirar o fôlego. Já vi a pitaya num desenho de Debret, mas a do tipo maracujá doce por fora. É deliciosa, eu acho, cortada ao meio, comida com colherinha, uma receita dos deuses de um pudim finíssimo e equilibrado, pudim, não, mousse, branca com pintinhas negras. Tão difícil descrever uma fruta...
O que não é problema para o detetive Karp, que enfrenta o conhecimento de uma nova variedade como um obsessivo conhecedor de vinhos, levando em conta o terroir, o cultivo, a produção em pequena escala. O grande gosto que ele tenta achar em toda a fruta é como o gosto da caça, elusivo, mas ali, firme, ainda não vitimado pela produção em massa e pelo transporte. Ele quer o pêssego branco com pele de veludo, frágil, escorrendo suco doce, daquelas frutas que você tem que comer se curvando um pouco para a frente a fim de não manchar o peito da camisa.
Bem, tem muita coisa interessante nesta "New Yorker". Vale a pena comprar e ler com carinho, ou guardar para ler depois.

ninahort@uol.com.br



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