São Paulo, sexta, 29 de agosto de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ozu observa convenções em 'Bom Dia'

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

O inconveniente de "Bom Dia" deixa-se ver de imediato: a cópia antiga, desbotada, às vezes riscada.
Mas os filmes colossais resistem a esses pequenos inconvenientes. De certo modo, o desconforto representado por eles ajuda mesmo a afirmar o filme.
E quem souber ver suas belezas perceberá em "Bom Dia" um filme invulgar, de um cineasta colossal. Para isso, será preciso esquecer a noção de intriga.
Ela praticamente inexiste. Ou antes, o que há é um grupo de vizinhas fofoqueiras falando da vida dos outros; duas crianças que fazem uma greve de silêncio, exigindo uma TV em casa e reclamando que os adultos falam coisas inúteis ("bom dia", "boa tarde", "como vai" etc.), um professor de inglês que não consegue declarar seu amor por uma garota.
Aparência
As pequenas tramas que se armam obedecem ao que se pode chamar de dialética de Yasujiro Ozu.
Ele filma a aparência da vida (o que, no caso do Japão, inclui uma série de convenções razoavelmente rígidas, entre elas o cumprimento diário entre vizinhos).
É na fissura dessas aparências -e por meio delas- que, pouco a pouco, vai se revelando uma essência: um modo de vida.
Aos poucos, podemos ver o Japão do fim dos anos 50. Ainda pobre -mas já se reerguendo-, em processo de americanização, entrando timidamente na cultura do consumo.
As contradições entre a convenção (a tradição aí incluída) e a experiência de cada personagem (incluído seu contato com a modernidade) vão determinar a tensão que se estabelece ao longo dessa comédia, quase como se a uma tese se opusesse sua antítese.
Daí surgirá a síntese, que consiste em um novo ajuste entre essência e aparência.
De certo modo, portanto, "Bom Dia" não está longe do modelo clássico americano, por exemplo, em que o filme pressupõe uma normalidade que é abalada por um incidente para, no final, essa normalidade se restabelecer.
A diferença está no ritmo e na maneira de observar as coisas. Em Yasujiro Ozu, não há uma normalidade que se restabelece, mas um retorno à aparência, às formas superficiais.
Mas, como essa superfície é espelho de uma essência, a crise que se instaura leva a uma aparência transformada.
Ensaio sobre a mutabilidade das coisas, crônica sobre um momento específico do Japão, série de pequenos contos sobre a educação e as relações entre adultos e crianças: "Bom Dia" é tudo isso, mais a originalidade de Ozu, que o torna único no cinema mundial: a filmagem sempre em planos fixos, baixos, longos, em que os atores não raro dialogam olhando diretamente para a câmera.
Um cinema que não julga, não critica, não tem mensagem: observa, apenas, mas como poucos.

Filme: Bom Dia Produção: Japão, 1959 Direção: Yasujiro Ozu Com: Chishu Ryu, Kuniko Miyake, Yoshiko Kuga Quando: a partir de hoje, nos cineclube Estação Vitrine, às 18h


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.