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Ozu observa convenções em 'Bom Dia'
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
O inconveniente de "Bom Dia"
deixa-se ver de imediato: a cópia
antiga, desbotada, às vezes riscada.
Mas os filmes colossais resistem
a esses pequenos inconvenientes.
De certo modo, o desconforto representado por eles ajuda mesmo
a afirmar o filme.
E quem souber ver suas belezas
perceberá em "Bom Dia" um filme invulgar, de um cineasta colossal. Para isso, será preciso esquecer
a noção de intriga.
Ela praticamente inexiste. Ou
antes, o que há é um grupo de vizinhas fofoqueiras falando da vida
dos outros; duas crianças que fazem uma greve de silêncio, exigindo uma TV em casa e reclamando
que os adultos falam coisas inúteis
("bom dia", "boa tarde", "como
vai" etc.), um professor de inglês
que não consegue declarar seu
amor por uma garota.
Aparência
As pequenas tramas que se armam obedecem ao que se pode
chamar de dialética de Yasujiro
Ozu.
Ele filma a aparência da vida (o
que, no caso do Japão, inclui uma
série de convenções razoavelmente rígidas, entre elas o cumprimento diário entre vizinhos).
É na fissura dessas aparências
-e por meio delas- que, pouco a
pouco, vai se revelando uma essência: um modo de vida.
Aos poucos, podemos ver o Japão do fim dos anos 50. Ainda pobre -mas já se reerguendo-, em
processo de americanização, entrando timidamente na cultura do
consumo.
As contradições entre a convenção (a tradição aí incluída) e a experiência de cada personagem (incluído seu contato com a modernidade) vão determinar a tensão
que se estabelece ao longo dessa
comédia, quase como se a uma tese se opusesse sua antítese.
Daí surgirá a síntese, que consiste em um novo ajuste entre essência e aparência.
De certo modo, portanto, "Bom
Dia" não está longe do modelo
clássico americano, por exemplo,
em que o filme pressupõe uma
normalidade que é abalada por um
incidente para, no final, essa normalidade se restabelecer.
A diferença está no ritmo e na
maneira de observar as coisas. Em
Yasujiro Ozu, não há uma normalidade que se restabelece, mas um
retorno à aparência, às formas superficiais.
Mas, como essa superfície é espelho de uma essência, a crise que
se instaura leva a uma aparência
transformada.
Ensaio sobre a mutabilidade das
coisas, crônica sobre um momento específico do Japão, série de pequenos contos sobre a educação e
as relações entre adultos e crianças: "Bom Dia" é tudo isso, mais a
originalidade de Ozu, que o torna
único no cinema mundial: a filmagem sempre em planos fixos, baixos, longos, em que os atores não
raro dialogam olhando diretamente para a câmera.
Um cinema que não julga, não
critica, não tem mensagem: observa, apenas, mas como poucos.
Filme: Bom Dia
Produção: Japão, 1959
Direção: Yasujiro Ozu
Com: Chishu Ryu, Kuniko Miyake, Yoshiko
Kuga
Quando: a partir de hoje, nos cineclube
Estação Vitrine, às 18h
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