São Paulo, sábado, 29 de agosto de 1998

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Rossi, Maluf, santos e gatunos nos idos de Agosto

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

A amoreira veio num carrinho, desfolhada, programada para abrir na primavera. Época em que as sabiás começariam a recuperar sua voz para cantar o "tempo do amor". Falhou a ornitologia de José de Alencar em "Iracema" porque mais uma vez desacertou-se o relógio biológico do nosso mundo.
Um mês antes da primavera, a amoreira deita flores, frutos e o nosso tordo, que os índios tupis chamavam de haabi'á, anda desinibido, ensaiando a melancólica coloratura. Coisa do mormaço, ou da massa de ar quente que teima em abancar-se em cima de nosso país, apesar do charme das meteorologistas dos telejornais anunciando frentes frias exportadas da Argentina.
Dentro de dois dias acaba Agosto, Mês do Desgosto. O estigma do calendário, ao que consta, só é conhecido nas plagas onde a última flor do Lácio facilita a paupérrima rima. Augusto -magnífico, venerando- tem a ver com os bons agouros (auguriu), vizinho no dicionário, vaticínio dos antigos inspirado no canto das aves.
O adjetivo deu nome ao primeiro imperador romano, Augustus, o responsável pelo suicídio de Antônio e Cleópatra, que trocou o nome do mês Sextilis e, para não ficar menor do que os 31 dias do mês criado pelo tio-avô e antecessor, Júlio César (Julho), roubou um dia de Fevereiro. Corrigiu a maior falha do calendário juliano que começou a vigorar no fim do ano 46 a.C., "ultimus annus confusionis'.
Ápice do verão no Hemisfério Norte, associado à excitação, desatinos e perturbação. A princesa Diana Spencer morreu no último dia do mês, depois de um tremendo agito estival. A Primeira Grande Guerra começou no dia 1º de Agosto de 1914, quando o Kaiser alemão mandou invadir a Rússia do primo, o Czar, ambos igualmente cesaristas e autocratas.
Por uma diferença de cinco horas e 45 minutos, a Segunda Guerra Mundial teria começado igualmente em Agosto: a Polônia foi invadida na madrugada de 1º de Setembro de 1939. Em compensação, esse que foi o maior conflito bélico da história da humanidade terminou a 14 de Agosto de 1945 com a rendição incondicional do Japão.
Aqui nos antípodas, os agourentos idos de Março, imortalizados por Shakespeare em "Júlio Cesar", mudaram-se para esta quadra. Entramos na Guerra Mundial no dia 31 de Agosto de 1942, depois que os submarinos nazistas afundaram cinco navios mercantes brasileiros na madrugada de 18 (morreram em torpedamentos mais brasileiros do que nos campos de batalha da Itália).
Em 24 de Agosto de 1954 suicidou-se Getúlio Vargas, depois de uma crise que começou no dia 5, com a tentativa de assassinato do jornalista-deputado Carlos Lacerda, que acabou vitimando o major Rubem Vaz. Sete anos depois e com sete meses de mandato, a 25 de Agosto de 1961, por causa de uma insignificante crise palaciana e alguma influência hepática, renunciou o presidente Jânio Quadros. A 28 de Agosto de 1969, o presidente-general Costa e Silva teve uma trombose cerebral sendo substituído por uma Junta Militar que impediu a posse do seu vice, Pedro Aleixo -ditadura escancarada e assumida.
Por artes de Agosto, aqui tudo acontece ao revés e ao avesso: os fiscais da Receita Federal, para se rebelar, adotam a Operação-Padrão, que teoricamente seria a ideal, e o governo, em represália, simplifica os procedimentos de importação e exportação para evitar um colapso da economia.
Puro mau gosto, "kitsch" magnificado: enquanto o mundo inteiro, sem exceção, angustia-se diante do fantasma do grande "crack" de 24 de Outubro de 1929, os candidatos da Frente das Oposições, eufóricos, apostam todos os trunfos para que o país seja a "bola da vez", a próxima vítima do "amok" financeiro. Auto-imolação -há gosto para tudo. Mas Dona Catástrofe jamais ganhou eleições.
É o que ensina o mago marqueteiro Duda Mendonça. Na Espanha esse cavaleiro andante seria o D. Quixote; aqui em Aipotú, avesso da utopia, é Dom Caixote, camelô-mor, genial Midas que vende gato por lebre e jamais paga multa por propaganda enganosa.
Neste grande pastiche da democracia denominado "horário político gratuito" (no qual não se faz política e nada é gratuito -as emissoras são compensadas de acordo com a Lei Eleitoral), acontecem coisas espantosas. Paulo Maluf, por exemplo, conseguiu admitir aquilo que Ademar de Barros só diria na extrema-unção. Ou, em seguida, no Juízo Final.
Não é santo, confessa Duda-Maluf com voz de mulher. Como se as mulheres fossem cínicas e estúpidas. Porque é malandro, fala enviesado, jamais dirá que é beato. Apela para a porção gatuna que subsiste em certas almas desde os tempos da ditadura.
Puro, virtuoso, imaculado é Francisco Rossi. Como trailer da insubordinação que promoverá caso seja eleito, o cara-de-pau de Osasco convocou 40 coronéis e tenentes-coronéis da PM para ajudá-lo na campanha eleitoral. É a primeira vez que oficiais superiores de uma corporação militar rompem abertamente com o compromisso de neutralidade e imparcialidade que assumiram perante a sociedade. Mais uma prova de que a PM deve ser desmilitarizada e os seus infratores enquadrados pela Justiça comum.
Atônito com os descaminhos da condição humana, Miguel de Unamuno apelava para o sentimento trágico da vida. Neste Agosto que finda, mosquitos e moscas-azuis desvairados, soltam-se os saltimbancos para exibir o sentido cômico das situações.

Nota 1 - Leitores pedem-me para relacionar a bibliografia de Aipotú. Por enquanto, resume-se a esta Ilustrada (25/7/98; 1/8/98; 15/8/98; 22/8/98 e, hoje, 28/8/98).

Nota 2 - Aproveito para registrar o lançamento de três obras indispensáveis aos que se interessam pelo estudo das utopias: "Fourier, o Socialismo do Prazer", de Leandro Konder (Livraria Civilização Brasileira); "A Utopia, um Convite à Filosofia", de Jean-Yves Lacroix (Jorge Zahar Editor) e "Anarquia, Estado e Utopia", de Robert Nozik (idem).



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