São Paulo, sexta-feira, 29 de setembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GASTRONOMIA
Marco Pierre White e o menino

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Não estava com muito palpite nesta viagem a Londres e não reservei nenhum restaurante estrelado. O que não fez mal, pois, ao chegar aqui, vimos que toda a comidinha de restaurantes médios estava boa, fresca, com apresentação bonita. E quem quer se emperiquitar inteiro, botar gravata, salto, para ir comer? Acho que é coisa dos anos 80. Passou de moda.
Mas foi me dando uma aflição, por causa de você, leitor. Como é que posso afirmar que comida perfeita e luxuosa não está valendo a pena se não experimento? Afinal, é minha profissão, é preciso não deixar cair. Coragem.
Um cozinheiro que não conhecia ainda de perto era Marco Pierre White que, desde 87, é o "enfant gâté" da cozinha inglesa. Bom de criatividade, bom de aparecer em jornais, bom para levantar restaurantes falidos. Resolvemos ir ao Oak Room Marco Pierre White. A crítica unânime de todos os críticos é que é caro. Muitos defendem afirmando que é caro porque é bom.
Chegamos na hora marcada, quase antes do chef, com certeza, e fomos nos acomodando, vendo os garçons tomarem conta de suas praças, o maître supervisionar a sala, coisa que acho bonita, um métier tão antigo, no meio de madeira, ouro, lustres de cristal...
O que quero aqui é contar o menu para você. Mas não posso contar o menu assim nu e cru. Na nossa frente, sentou-se uma família japonesa formada por pai e mãe jovens, duas mulheres que eu diria irmãs da mãe, um filho de uns 9 anos, de terno, gravata, e um senhor japonês mais velho, com certeza o homenageado, pelas mesuras de cabeça que faziam a ele.
As duas agregadas, tias do menino, além de não darem palavrinha, tinham uns gogós que subiam e desciam, a boca seca de ansiedade de estarem em tão importante companhia. Mas quem arrasava era o menino. Gordo, não obeso, mas gordo, de pele muito clara, com traços chatos, sem perfil que se notasse, e cabelo muito preto, nascendo com um tufo duro para a frente. Adorava o pai e não se mexia sem passar os olhos por ele em muda imitação. A família toda, atenta ao convidado, não lhe dava a mínima atenção.
Eu me encantei com as bolas de gude negras que eram os seus olhos, apertados dentro das pálpebras grossas, mas conseguindo tudo ver e observar, rolando com facilidade uma expressão mais que notável.
Tudo começou com "aspic de ostras com agrião em gelatina de champanhe". Era uma única e grande ostra em meia casca, "en gelée", apoiada no prato sobre sal grosso. A ostra brilhava em aspic dourado, como a borda do prato. O menino, com o rabo do olho esperto, fitou o pai. Se o seu deus comesse aquilo, era porque aquilo era comida, ele também teria de fazê-lo. O pai comeu. Ele encarou a ostra, mas encarou mesmo, por um bom tempo, intenso, bravo, sentimento de ódio aparente rolando no peito, sem falar nada, mas falando tudo. "Que bicho nojento é você, que veio perturbar minha vida que ia andando tão bem?" Pegou a ostra inteira com o garfinho e comeu. A cara dele foi de quem se sentiu ofendido, maltratado mesmo. Que coisa mais horrível. Aquilo era a experiência gastronômica que lhe tinham prometido? Bebeu rapidamente um copo de Coca para lavar a infelicidade e ajeitou-se na poltrona de veludo. Ainda havia uma esperança.
Segundo prato: "ballottine de salmão com ervas, salada de camarão com azedinha selvagem e caviar". Estava bom, o salmão excelente, a azedinha selvagem era o nosso trevo de três folhas. O serviço perfeito e garçons à vontade.
Terceiro prato: "lagosta grelhada com ervas e alho, ao molho béarnaise". Era uma lagosta pequena, dentro de sua própria casca e muito saborosa. Ninguém olhava o menino, ninguém o amava mais, nem nos momentos de perigo como aquele. Puxou o fio de bigode do bicho devagar, medindo-o com estudado exagero. Intrigado, desolado, provou uns pedacinhos, com um ponto de interrogação no rosto. Mais sofrimento?
Quarto prato: "pombo de Bresse com foie gras, purê de batatas ao fumet de cèpes". Uma boa coxa, não eram seguramente os pombos de Trafalgar, carne vermelha, suculenta, recheada com fígado e recoberta por uma finíssima folha de repolho transparente que a protegera ao forno. Purê passado por peneira fina.
O menino estava pálido. Passou as mãos pelo rosto com força, num desespero de gravata, como se aquilo pudesse acordá-lo do pesadelo. As tias já se animavam mais depois do vinho e riam por trás do guardanapo, murmurando monossílabos de assentimento para o personagem importante. E o menino solto e perdido no mundo.
Veio o "brie recheado com trufas". Depois chegou a sobremesa. Primeiro um pequeno "crème caramel", com uma arvorezinha de prata ao lado, cheia de "friandises", minidocinhos. O infeliz já passara da possibilidade de aproveitar qualquer coisa. Fechara os olhos e balançava a cabeça devagarzinho, junto ao prato, como um autista.
No enorme e trêmulo "soufflé de chocolat, glace au lait", a cabeça do gorducho simplesmente tombou para frente, o topete preto e duro se afundou na massa doce. (Poucas vezes na vida ri com tanto gosto. Era o menino mais engraçado do Japão, solto na Inglaterra.) O pai só lhe deu um tapinha carinhoso na bochecha para acordá-lo de vez.
Essa foi a história do rapazinho japonês dasavisado e de dois velhotes aliviados em 200 libras, que, afinal, valeram a pena. Por esta vez.
E-mail - ninahort@uol.com.br


Restaurante: Oak Room Marco Pierre White Endereço: hotel Meridien, W1V 0BH, 21, Piccadilly, Londres, tel. 00/xx/44/20/ 7437-0202

Texto Anterior: Alain Delon não pára lançamento de biografia
Próximo Texto: Mundo Gourmet - Josimar Melo: De bar a restaurante, Don Mariano segue no caminho
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.