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GASTRONOMIA
Marco Pierre White e o menino
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Não estava com muito palpite nesta viagem a Londres
e não reservei nenhum restaurante estrelado. O que não fez mal,
pois, ao chegar aqui, vimos que
toda a comidinha de restaurantes
médios estava boa, fresca, com
apresentação bonita. E quem
quer se emperiquitar inteiro, botar gravata, salto, para ir comer?
Acho que é coisa dos anos 80. Passou de moda.
Mas foi me dando uma aflição,
por causa de você, leitor. Como é
que posso afirmar que comida
perfeita e luxuosa não está valendo a pena se não experimento?
Afinal, é minha profissão, é preciso não deixar cair. Coragem.
Um cozinheiro que não conhecia ainda de perto era Marco Pierre White que, desde 87, é o "enfant gâté" da cozinha inglesa.
Bom de criatividade, bom de aparecer em jornais, bom para levantar restaurantes falidos. Resolvemos ir ao Oak Room Marco Pierre White. A crítica unânime de todos os críticos é que é caro. Muitos defendem afirmando que é caro porque é bom.
Chegamos na hora marcada,
quase antes do chef, com certeza,
e fomos nos acomodando, vendo
os garçons tomarem conta de
suas praças, o maître supervisionar a sala, coisa que acho bonita,
um métier tão antigo, no meio de
madeira, ouro, lustres de cristal...
O que quero aqui é contar o menu para você. Mas não posso contar o menu assim nu e cru. Na
nossa frente, sentou-se uma família japonesa formada por pai e
mãe jovens, duas mulheres que eu
diria irmãs da mãe, um filho de
uns 9 anos, de terno, gravata, e um
senhor japonês mais velho, com
certeza o homenageado, pelas
mesuras de cabeça que faziam a
ele.
As duas agregadas, tias do menino, além de não darem palavrinha, tinham uns gogós que subiam e desciam, a boca seca de ansiedade de estarem em tão importante companhia. Mas quem arrasava era o menino. Gordo, não
obeso, mas gordo, de pele muito
clara, com traços chatos, sem perfil que se notasse, e cabelo muito
preto, nascendo com um tufo duro para a frente. Adorava o pai e
não se mexia sem passar os olhos
por ele em muda imitação. A família toda, atenta ao convidado,
não lhe dava a mínima atenção.
Eu me encantei com as bolas de
gude negras que eram os seus
olhos, apertados dentro das pálpebras grossas, mas conseguindo
tudo ver e observar, rolando com
facilidade uma expressão mais
que notável.
Tudo começou com "aspic de
ostras com agrião em gelatina de
champanhe". Era uma única e
grande ostra em meia casca, "en
gelée", apoiada no prato sobre sal
grosso. A ostra brilhava em aspic
dourado, como a borda do prato.
O menino, com o rabo do olho esperto, fitou o pai. Se o seu deus comesse aquilo, era porque aquilo
era comida, ele também teria de
fazê-lo. O pai comeu. Ele encarou
a ostra, mas encarou mesmo, por
um bom tempo, intenso, bravo,
sentimento de ódio aparente rolando no peito, sem falar nada,
mas falando tudo. "Que bicho nojento é você, que veio perturbar
minha vida que ia andando tão
bem?" Pegou a ostra inteira com o
garfinho e comeu. A cara dele foi
de quem se sentiu ofendido, maltratado mesmo. Que coisa mais
horrível. Aquilo era a experiência
gastronômica que lhe tinham
prometido? Bebeu rapidamente
um copo de Coca para lavar a infelicidade e ajeitou-se na poltrona
de veludo. Ainda havia uma esperança.
Segundo prato: "ballottine de
salmão com ervas, salada de camarão com azedinha selvagem e
caviar". Estava bom, o salmão excelente, a azedinha selvagem era o
nosso trevo de três folhas. O serviço perfeito e garçons à vontade.
Terceiro prato: "lagosta grelhada com ervas e alho, ao molho
béarnaise". Era uma lagosta pequena, dentro de sua própria casca e muito saborosa. Ninguém
olhava o menino, ninguém o
amava mais, nem nos momentos
de perigo como aquele. Puxou o
fio de bigode do bicho devagar,
medindo-o com estudado exagero. Intrigado, desolado, provou
uns pedacinhos, com um ponto
de interrogação no rosto. Mais sofrimento?
Quarto prato: "pombo de Bresse com foie gras, purê de batatas
ao fumet de cèpes". Uma boa coxa, não eram seguramente os
pombos de Trafalgar, carne vermelha, suculenta, recheada com
fígado e recoberta por uma finíssima folha de repolho transparente que a protegera ao forno. Purê
passado por peneira fina.
O menino estava pálido. Passou
as mãos pelo rosto com força,
num desespero de gravata, como
se aquilo pudesse acordá-lo do
pesadelo. As tias já se animavam
mais depois do vinho e riam por
trás do guardanapo, murmurando monossílabos de assentimento
para o personagem importante. E
o menino solto e perdido no
mundo.
Veio o "brie recheado com trufas". Depois chegou a sobremesa.
Primeiro um pequeno "crème caramel", com uma arvorezinha de
prata ao lado, cheia de "friandises", minidocinhos. O infeliz já
passara da possibilidade de aproveitar qualquer coisa. Fechara os
olhos e balançava a cabeça devagarzinho, junto ao prato, como
um autista.
No enorme e trêmulo "soufflé
de chocolat, glace au lait", a cabeça do gorducho simplesmente
tombou para frente, o topete preto e duro se afundou na massa doce. (Poucas vezes na vida ri com
tanto gosto. Era o menino mais
engraçado do Japão, solto na Inglaterra.) O pai só lhe deu um tapinha carinhoso na bochecha para acordá-lo de vez.
Essa foi a história do rapazinho
japonês dasavisado e de dois velhotes aliviados em 200 libras,
que, afinal, valeram a pena. Por
esta vez.
E-mail - ninahort@uol.com.br
Restaurante: Oak Room Marco Pierre
White
Endereço: hotel Meridien, W1V 0BH, 21,
Piccadilly, Londres, tel. 00/xx/44/20/
7437-0202
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