São Paulo, sábado, 29 de setembro de 2001

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ARTIGO

Estados Unidos têm de ajudar a criar nova legalidade

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi o século mais curto, conforme as memoráveis palavras do historiador inglês Eric Hobsbawm. De Sarajevo a Sarajevo. De 1914 a 1994.
Mas, se é verdade que o longuíssimo século 19 se estendeu desde a Revolução Francesa até a Primeira Guerra, o brevíssimo século 20, que começou com "os canhões de agosto" de 1914 (título de um grande livro de Barbara Tuchman), terminou com a queda do Muro de Berlim, em 1989, que marcou o fim da Guerra Fria.
Equilíbrio de terror, esferas de influência, maniqueísmo ideológico, mundo bipolar dominado pela rivalidade entre as duas superpotências, os Estados Unidos e a União Soviética. Quão distante, quão saudoso nos parece hoje esse universo do equilíbrio nuclear, à luz dos terríveis acontecimentos de 11 de setembro deste ano.
Falou-se da passagem para um mundo multipolar, estranha cabeça de hidra na qual, além da Rússia e dos EUA, a Comunidade Européia, a América Latina, a África e a Ásia seriam novos centros de poder. A realidade foi outra: do mundo bipolar passamos ao unipolar, dominado por uma única superpotência. Em lugar da cabeça da hidra, o olhar de Medusa, capaz de transformar em pedra qualquer país que o desafie.
Falou-se do triunfo da globalidade, baseada num mercado mundial de crescente prosperidade e valores econômicos, políticos e culturais identificados com a democracia, portadora de valores que resistem à uniformização e de culturas como forças visíveis que dariam voz às pautas adiadas por meio século de Guerra Fria.
Mas o que não foi suficientemente previsto era que a própria globalidade não daria seus frutos sem a prevalência do direito e que uma globalidade sem regras desembocaria em desequilíbrios perigosos e injustiças perpetuadas.
Em 1999, o presidente Bill Clinton lembrou à Assembléia Geral da ONU que mais de 1 bilhão de seres humanos vivem com menos de um dólar por dia e que, a cada ano, 40 milhões de homens, mulheres e crianças morrem de fome em nosso mundo feliz. Os números da injustiça são muitos e todos os conhecem -e, no entanto, quando não se responde à injustiça com indiferença, responde-se com esforços humanitários louváveis, mas insuficientes.
Assim como a globalidade demonstrou suas insuficiências, a localidade não demorou a nos ensinar as suas: regressões a certezas obscuras, fatalismos aberrantes, fobias latentes, nacionalismos agressivos, limpeza étnica, tribalismo intolerante.
São esses dois mundos que se chocaram tragicamente sobre as metrópoles norte-americanas em 11 de setembro: os defeitos da globalização irrestrita, dominada por uma única grande potência, e os da localização irrestrita, dominada por tribalismos intolerantes. Em Nova York e Washington, a potência maior mostrou sua impotência, e a impotência maior demonstrou sua potência.
Podemos lembrar a cegueira quase oligofrênica dos governos norte-americanos, que alimentaram com leite víboras que lhes responderam com veneno.
Saddam Hussein é produto da diplomacia norte-americana que buscava cercar e limitar a ação dos aiatolás vitoriosos e intolerantes do Irã. Osama bin Laden é produto da diplomacia norte-americana que o armou para combater a presença soviética no Afeganistão. De Castillo Armas, na Guatemala, a Pinochet, no Chile, foi a diplomacia norte-americana que implantou as mais sanguinárias ditaduras da América Latina. E, no Vietnã, embora tenham sido Exércitos que se enfrentaram, a população civil foi a mais numerosa vítima do confronto, a ponto de converter a exceção de ontem (Guernica, Coventry, Dresden) na regra de hoje.
Eu estava em Santa Fé quando ocorreu o ataque terrorista contra Washington e Nova York. Santa Fé nunca será objeto de um ataque destruidor. Seu encanto provinciano, recolhido, índio, espanhol e americano a salva da tentação destrutiva. Mas, mesmo ali, no Novo México, sentia-se a dor diante da morte de inocentes.
O "ataque à América", que serviu de bordão, foi um ataque contra homens, mulheres e crianças concretos; foi um ataque a pais e filhos, amigos e colegas de trabalho... Isso é intolerável e ultrapassa qualquer racionalidade.
Surge com força a fácil tentação da vingança babilônica, da lei de Hamurabi, a lei de talião: olho por olho, dente por dente. É a saída fácil, é a saída inútil. É a represália que provoca nova represália, numa espiral incontrolável de violência que pode nos submergir.
É a represália norte-americana contra um inimigo sem rosto, que inspira e justifica as represálias russas contra a Tchetchênia e as represálias chinesas contra suas etnias setentrionais. É a represália que, como a mancha de sangue de Macbeth, se estende até afogar tudo, inclusive o sonho.
O problema, para os EUA, é vingar-se sem saber do quê, atacar sem saber a quem. A tentação de atribuir um rosto ao inimigo invisível é muito grande, e o risco é que se obriguem justos a pagar por pecadores. Não é esse o caminho. É fácil demais. É irrefletido demais. É perigoso demais.
Sobretudo, porém, falar em "represálias" significa deixar de lado o tema que exige nossa atenção se quisermos conviver de maneira civilizada no século 21. Esse tema é a criação de uma nova legalidade para uma nova realidade.
O fim da história proclamado por Francis Fukuyama uma década atrás hoje soa como piada. Longe de ter terminado, a história se tornou tão veloz, o espaço, tão grande, e o tempo, tão breve, que todas as formas forjadas ao longo de um milênio -Estado, nação, sociedade civil, soberania- estão se dissolvendo, ao mesmo tempo em que vêm se reafirmando as tribos, os clãs, os encraves linguísticos e religiosos. A globalidade não criou uma legalidade que se aplique de maneira igual aos Estados nacionais prejudicados e aos tribalismos locais ressurrectos.
O "inimigo" não tem rosto, mas talvez o "amigo" tenha. Dizer que quem semeia o vento colhe a tempestade não basta para acalmar a imensa dor da morte dos inocentes. Mas fazer com que os EUA encarem suas obrigações internacionais, isso, sim, confere rosto à possibilidade de uma nova legalidade para uma nova realidade.
Se Estado, nação e comunidade internacional não assumirem compromisso com uma legalidade superior às forças do mercado e às do crime, estas irão se impor com a força da fatalidade invisível. Os EUA não poderão protestar contra um ataque sangrento, vil e astuto como o que sofreram no dia 11 se excluírem os EUA da legalidade internacional, renegarem os tratados de proteção do ambiente, privilegiarem as empresas que exploram o equilíbrio natural, se recusarem a se sujeitar às normas da justiça internacional, em nome de uma soberania que negam aos mais fracos.
Se os EUA realmente querem combater o terrorismo que tão impunemente feriu seu coração nacional, devem aproveitar esta trágica oportunidade para unir-se aos esforços já iniciados no sentido de impor sanções legais aos crimes de guerra e às violações dos direitos humanos, fortalecer os organismos internacionais, encabeçar as campanhas para a erradicação da pobreza, da fome, da doença e do analfabetismo num mundo cada vez mais injusto, mais dividido, mais explosivo, verdadeiro caldo de reprodução de criminosos como os que, no dia 11, zombaram do escudo antimísseis, zombaram da CIA e de sua notória falta de inteligência, riram de toda a incapacidade da única grande potência mundial de viver fora do sonho embriagador de seu próprio poder.
Todas as jurisdições do passado caíram por terra. O terrorismo, o crime organizado e o império da droga jogam por terra qualquer jurisdição e criam jurisdições próprias. Nova legalidade para uma nova realidade: "Carecemos de inteligência jurídica e diplomática para responder a esse desafio", "carecemos da inteligência negociadora necessária para desmontar os mecanismos de conflito que provocam o terrorismo", "carecemos da disposição de negociar para aplainar, um a um, os caminhos hoje obstruídos que conduzem à paz e à legalidade, no Oriente Médio, na Irlanda do Norte, no País Basco". Tarefa demorada, às vezes desesperadora, mas na qual nunca devemos perder as esperanças.


Carlos Fuentes é mexicano, autor de "A Morte de Artemio Cruz", entre outros


Tradução Clara Allain


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