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ARTIGO
Estados Unidos têm de ajudar a criar nova legalidade
CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Foi o século mais curto, conforme as memoráveis palavras do historiador inglês Eric
Hobsbawm. De Sarajevo a Sarajevo. De 1914 a 1994.
Mas, se é verdade que o longuíssimo século 19 se estendeu desde a
Revolução Francesa até a Primeira Guerra, o brevíssimo século 20,
que começou com "os canhões de
agosto" de 1914 (título de um
grande livro de Barbara Tuchman), terminou com a queda do
Muro de Berlim, em 1989, que
marcou o fim da Guerra Fria.
Equilíbrio de terror, esferas de
influência, maniqueísmo ideológico, mundo bipolar dominado
pela rivalidade entre as duas superpotências, os Estados Unidos e
a União Soviética. Quão distante,
quão saudoso nos parece hoje esse universo do equilíbrio nuclear,
à luz dos terríveis acontecimentos
de 11 de setembro deste ano.
Falou-se da passagem para um
mundo multipolar, estranha cabeça de hidra na qual, além da
Rússia e dos EUA, a Comunidade
Européia, a América Latina, a
África e a Ásia seriam novos centros de poder. A realidade foi outra: do mundo bipolar passamos
ao unipolar, dominado por uma
única superpotência. Em lugar da
cabeça da hidra, o olhar de Medusa, capaz de transformar em pedra qualquer país que o desafie.
Falou-se do triunfo da globalidade, baseada num mercado
mundial de crescente prosperidade e valores econômicos, políticos
e culturais identificados com a democracia, portadora de valores
que resistem à uniformização e de
culturas como forças visíveis que
dariam voz às pautas adiadas por
meio século de Guerra Fria.
Mas o que não foi suficientemente previsto era que a própria
globalidade não daria seus frutos
sem a prevalência do direito e que
uma globalidade sem regras desembocaria em desequilíbrios perigosos e injustiças perpetuadas.
Em 1999, o presidente Bill Clinton lembrou à Assembléia Geral
da ONU que mais de 1 bilhão de
seres humanos vivem com menos
de um dólar por dia e que, a cada
ano, 40 milhões de homens, mulheres e crianças morrem de fome
em nosso mundo feliz. Os números da injustiça são muitos e todos
os conhecem -e, no entanto,
quando não se responde à injustiça com indiferença, responde-se
com esforços humanitários louváveis, mas insuficientes.
Assim como a globalidade demonstrou suas insuficiências, a
localidade não demorou a nos ensinar as suas: regressões a certezas
obscuras, fatalismos aberrantes,
fobias latentes, nacionalismos
agressivos, limpeza étnica, tribalismo intolerante.
São esses dois mundos que se
chocaram tragicamente sobre as
metrópoles norte-americanas em
11 de setembro: os defeitos da globalização irrestrita, dominada
por uma única grande potência, e
os da localização irrestrita, dominada por tribalismos intolerantes.
Em Nova York e Washington, a
potência maior mostrou sua impotência, e a impotência maior
demonstrou sua potência.
Podemos lembrar a cegueira
quase oligofrênica dos governos
norte-americanos, que alimentaram com leite víboras que lhes
responderam com veneno.
Saddam Hussein é produto da
diplomacia norte-americana que
buscava cercar e limitar a ação
dos aiatolás vitoriosos e intolerantes do Irã. Osama bin Laden é
produto da diplomacia norte-americana que o armou para
combater a presença soviética no
Afeganistão. De Castillo Armas,
na Guatemala, a Pinochet, no Chile, foi a diplomacia norte-americana que implantou as mais sanguinárias ditaduras da América
Latina. E, no Vietnã, embora tenham sido Exércitos que se enfrentaram, a população civil foi a
mais numerosa vítima do confronto, a ponto de converter a exceção de ontem (Guernica, Coventry, Dresden) na regra de hoje.
Eu estava em Santa Fé quando
ocorreu o ataque terrorista contra
Washington e Nova York. Santa
Fé nunca será objeto de um ataque destruidor. Seu encanto provinciano, recolhido, índio, espanhol e americano a salva da tentação destrutiva. Mas, mesmo ali,
no Novo México, sentia-se a dor
diante da morte de inocentes.
O "ataque à América", que serviu de bordão, foi um ataque contra homens, mulheres e crianças
concretos; foi um ataque a pais e
filhos, amigos e colegas de trabalho... Isso é intolerável e ultrapassa qualquer racionalidade.
Surge com força a fácil tentação
da vingança babilônica, da lei de
Hamurabi, a lei de talião: olho por
olho, dente por dente. É a saída fácil, é a saída inútil. É a represália
que provoca nova represália, numa espiral incontrolável de violência que pode nos submergir.
É a represália norte-americana
contra um inimigo sem rosto, que
inspira e justifica as represálias
russas contra a Tchetchênia e as
represálias chinesas contra suas
etnias setentrionais. É a represália
que, como a mancha de sangue de
Macbeth, se estende até afogar tudo, inclusive o sonho.
O problema, para os EUA, é vingar-se sem saber do quê, atacar
sem saber a quem. A tentação de
atribuir um rosto ao inimigo invisível é muito grande, e o risco é
que se obriguem justos a pagar
por pecadores. Não é esse o caminho. É fácil demais. É irrefletido
demais. É perigoso demais.
Sobretudo, porém, falar em "represálias" significa deixar de lado
o tema que exige nossa atenção se
quisermos conviver de maneira
civilizada no século 21. Esse tema
é a criação de uma nova legalidade para uma nova realidade.
O fim da história proclamado
por Francis Fukuyama uma década atrás hoje soa como piada.
Longe de ter terminado, a história
se tornou tão veloz, o espaço, tão
grande, e o tempo, tão breve, que
todas as formas forjadas ao longo
de um milênio -Estado, nação,
sociedade civil, soberania- estão
se dissolvendo, ao mesmo tempo
em que vêm se reafirmando as tribos, os clãs, os encraves linguísticos e religiosos. A globalidade não
criou uma legalidade que se aplique de maneira igual aos Estados
nacionais prejudicados e aos tribalismos locais ressurrectos.
O "inimigo" não tem rosto, mas
talvez o "amigo" tenha. Dizer que
quem semeia o vento colhe a tempestade não basta para acalmar a
imensa dor da morte dos inocentes. Mas fazer com que os EUA
encarem suas obrigações internacionais, isso, sim, confere rosto à
possibilidade de uma nova legalidade para uma nova realidade.
Se Estado, nação e comunidade
internacional não assumirem
compromisso com uma legalidade superior às forças do mercado
e às do crime, estas irão se impor
com a força da fatalidade invisível. Os EUA não poderão protestar contra um ataque sangrento,
vil e astuto como o que sofreram
no dia 11 se excluírem os EUA da
legalidade internacional, renegarem os tratados de proteção do
ambiente, privilegiarem as empresas que exploram o equilíbrio
natural, se recusarem a se sujeitar
às normas da justiça internacional, em nome de uma soberania
que negam aos mais fracos.
Se os EUA realmente querem
combater o terrorismo que tão
impunemente feriu seu coração
nacional, devem aproveitar esta
trágica oportunidade para unir-se
aos esforços já iniciados no sentido de impor sanções legais aos
crimes de guerra e às violações
dos direitos humanos, fortalecer
os organismos internacionais, encabeçar as campanhas para a erradicação da pobreza, da fome, da
doença e do analfabetismo num
mundo cada vez mais injusto,
mais dividido, mais explosivo,
verdadeiro caldo de reprodução
de criminosos como os que, no
dia 11, zombaram do escudo antimísseis, zombaram da CIA e de
sua notória falta de inteligência,
riram de toda a incapacidade da
única grande potência mundial
de viver fora do sonho embriagador de seu próprio poder.
Todas as jurisdições do passado
caíram por terra. O terrorismo, o
crime organizado e o império da
droga jogam por terra qualquer
jurisdição e criam jurisdições
próprias. Nova legalidade para
uma nova realidade: "Carecemos
de inteligência jurídica e diplomática para responder a esse desafio", "carecemos da inteligência
negociadora necessária para desmontar os mecanismos de conflito que provocam o terrorismo",
"carecemos da disposição de negociar para aplainar, um a um, os
caminhos hoje obstruídos que
conduzem à paz e à legalidade, no
Oriente Médio, na Irlanda do
Norte, no País Basco". Tarefa demorada, às vezes desesperadora,
mas na qual nunca devemos perder as esperanças.
Carlos Fuentes é mexicano, autor de "A
Morte de Artemio Cruz", entre outros
Tradução Clara Allain
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