São Paulo, sábado, 29 de setembro de 2001

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LIVRO/LANÇAMENTO

"SEXTA-FEIRA OU A VIDA SELVAGEM"

Francês disseca, em versão "júnior", personagens do clássico de Defoe

Tournier persegue "face oculta" dos mitos de Crusoé

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN

O que é um mito? "Um mito é uma história que todo mundo já conhece", responde Michel Tournier, escritor francês, autor de "Sexta-Feira ou a Vida Selvagem", que acaba de ser lançado no Brasil.
Pois quem não conhece a saga de Robinson Crusoé, personagem de um romance clássico publicado por Daniel Defoe (1660-1731) em 1719? A história, simples e encantadora como é comum entre os mitos, narra as atribulações de um homem civilizado que é obrigado a reaprender a conviver com a natureza após ficar isolado em uma ilha após um naufrágio (não confunda com Tom Hanks!).
Mais que isso, Robinson é um mito sobretudo porque exemplifica sob um formato popular (o romance) um conjunto de valores -o individualismo- que emergia com força naquele que hoje nos parece um longínquo século 18 e do qual não somos nada menos que a radicalização.
"Sob qualquer aspecto que o consideremos, Robinson está presente e vive em cada um de nós. Seu mito é, com certeza, um dos mais atuais que possuímos, ou melhor, que nos possui", escreve Tournier em sua autobiografia, "Le Vent Paraclet".
"Sexta-Feira ou a Vida Selvagem" é uma versão "júnior" de outro romance de Tournier, "Sexta-feira ou os Limbos do Pacífico". Uma releitura dessa obra numa perspectiva menos metafísica, mais lúdica, portanto mais sedutora para leitores jovens, cuja atenção o autor pretendia capturar ao reescrevê-la.
E por que Tournier dá, em ambos os títulos, primazia a Sexta-Feira, e não a Robinson? Porque ele é a "face oculta" do mito original. Tournier a retoma não para "desmistificar" o ímpeto civilizatório do Robinson erigido por Defoe. Mas para criar, dentro do mito original, um espaço para a emergência de um novo mito, a do "selvagem" ou "incivilizado" que, mais do que destruir os delírios de poder que tomam conta do "grande senhor de Speranza", oferece a ele uma alternativa "além do bem e do mal".
Robinson é um herói abandonado à mais extrema das provações, a solidão. Só, ele aprende a se impor à natureza, instrumentaliza-a conforme suas necessidades. Só, ele aos poucos se desumaniza e vê se despedaçar cada traço de sua civilidade. Sexta-Feira vai subverter tudo isso.
Mas não se espere daí uma ilustração simplista de idéias como "choque de culturas" ou a "up-to-date" "confronto de civilizações".
Ao mesmo tempo em que sua chegada detém o processo de "animalização" que ameaça Robinson (perda gradual da linguagem, primitivização do erotismo, regressão uterina) esse "outro" lança Robinson num processo de descoberta de uma alternativa à oposição "civilizado x selvagem".
Sob a influência informal de Sexta-Feira, Robinson vai se adequar à natureza e desistir de simplesmente programá-la; vai descobrir a fragilidade de seu domínio sobre a ilha, quando tudo for pelos ares em segundos.
Por isso, quando é dada a Robinson a escolha entre o mundo civilizado e a vida selvagem, ele pode, com toda a tranquilidade, decidir por um mundo novo.


Sexta-Feira ou a Vida Selvagem
Vendredi ou la Vie Sauvage
    
Autor: Michel Tournier
Tradução: Flávia Nascimento
Lançamento: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 18 (136 págs.)




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