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NELSON ASCHER
Edward Said (1935-2003)
A leucemia que, há poucos
dias, matou Edward Said
prolongou-se o bastante para que
o polemista e ativista político radicado nos Estados Unidos pudesse assistir à falência de seus projetos e expectativas.
Said deve sua reputação a ter se
tornado o mais articulado defensor da "causa palestina", algo que
nada tinha de difícil se considerarmos que seus competidores
nessa área, quando não estão
ocupados explodindo ônibus escolares ou pizzarias, satisfazem-se divulgando falsificações anti-semitas como "Os Protocolos dos
Sábios de Sião". Ainda assim, se
bem que sua prosa evoque uma
versão pós-moderna para o inglês
de uma tradução desconstrucionista francesa dos delírios germânicos de algum epígono de Martin Heidegger, sua dança acadêmica dos sete véus, sobrepondo
camadas de jargão marxista, antiimperialista e pós-colonial, jamais ocultou que seus objetivos
eram idênticos.
Boa parte de sua, digamos, autoridade moral resultava de ele se
apresentar como um refugiado
da terra natal palestina. Não obstante ter sido posta em dúvida
por adversários, a veracidade ou
não dessa reivindicação é uma
questão secundária. As fronteiras
internas do mundo árabe são artificiais e, meio século atrás, as
lealdades se estabeleciam em relação a clãs, famílias, cidades ou
aldeias e seitas religiosas, não a
países ou nações, uma importação européia que nem sequer teve
tempo de se aclimatar ao Oriente
Médio. A nacionalidade palestina, como identidade distinta, começou a ser elaborada somente
nos anos 60.
Nascido numa família da alta
classe média cristã, educado nas
melhores escolas, frequentador
dos clubes mais exclusivos, Said
tornou-se, desde os anos 50, um
norte-americano e beneficiou-se
tanto dessa condição como da
imagem romantizada de exilado
para atingir o ápice do mandarinato universitário. A partir dos
movimentos de contestação à
Guerra do Vietnã na década seguinte, a defesa de qualquer causa remotamente vinculada ao
Terceiro Mundo tornou-se primeiro popular e logo compulsória
entre os intelectuais do Ocidente.
Sensível a tal contexto, Said, que
se especializara em estudos literários, publicou em 1978 o livro que
o projetaria, garantindo-lhe, quase até o final da vida, o papel de
guru: "Orientalismo".
Seu "clássico" é uma diatribe
confusa, desinformada e raivosa
que se resume na aplicação a um
caso particular da batida tese genérica de acordo com a qual intelectuais são, em sua maioria, lacaios da classe dominante. O que
"Orientalismo" tenta expor com
meias verdades, com um "non sequitur" após o outro, com exemplos abstrusos e exceções convertidas em regras, é que o orientalismo, a disciplina, ou melhor, o
conjunto de disciplinas dedicadas
ao estudo dos povos e culturas ao
leste da Europa não passa do braço teórico da prática imperial.
Trocando em miúdos, quem quer
que tenha se aprofundado no estudo de línguas difíceis, como o
chinês ou o sânscrito, traduzido e
anotado obras antigas ou esquecidas da Pérsia ou do Japão, localizado e restaurado as ruínas de
templos e palácios soterrados fez
o que fez para que capitalistas
londrinos ou parisienses extraíssem confortavelmente a mais-valia gerada por povos distantes.
Não bastasse seu reducionismo
pueril, o autor circunscreveu sua
análise à menos oriental das regiões extra-européias: o mundo
árabe-islâmico. Envolvendo a publicação de sua obra numa sucessão de polêmicas em que às objeções substantivas retorquia questionando as credenciais ideológicas de seus críticos, ele conseguiu,
auxiliado pelo espírito da época,
transformá-la na pedra angular
da moda acadêmica que vigora
até hoje: a de julgar pessoas e trabalhos não por seus méritos científicos, mas por suas opções políticas. Seu grande sucesso reside em
ter, com a expressão "orientalismo" , cunhado um insulto que,
como "fascista", "racista" ou "comunista", possibilita ao usuário
esquivar-se do debate desqualificando os interlocutores.
Um ano depois, em 1979, sairia
seu outro "clássico", "A Questão
da Palestina", um livro que pretende narrar a tragédia de seu povo, mas cujos contatos com a verdade histórica são, na melhor das
hipóteses, tangenciais. Em meio
às incontáveis mistificações sobre
as quais se constrói essa versão
deformada do passado, a mais escandalosa é o misterioso desaparecimento do Grão Mufti de Jerusalém, Hadj Amin Al Husseini
(1893-1974). O principal líder político daquilo que Said chama de
Palestina, o desencadeador e dirigente da revolta antibritânica de
1936-39, o aliado dos nazistas que
tentou convencer Adolf Hitler a
exterminar os judeus de Tel Aviv
e Haifa, a personalidade que dominou a vida dos árabes da região entre os anos 20 e 60, conduzindo-os de catástrofe em catástrofe, aparece uma única vez, de
passagem, no livro inteiro. Isso
equivale a escrever sobre os EUA
ou a Itália dos mesmos anos omitindo respectivamente os nomes
de Roosevelt e Mussolini.
Durante duas boas décadas, até
que os atentados bin-ladenistas,
desmoralizando sua apresentação apologética do mundo islâmico, levassem seu arqui-rival, o
arabista octogenário Bernard Lewis, a eclipsá-lo, Said exerceu
uma influência intelectual tão
avassaladora quanto perniciosa.
E, embora sob eufemismos, como
o da criação de um país binacional onde judeus e árabes convivessem democraticamente, ele
continuasse acalentando o sonho
maníaco de abolir Israel, exterminando-lhe os habitantes "não-nativos", as verdadeiras vítimas
de suas idéias foram antes seus
conterrâneos, que ele ajudou a
conduzir rumo a novos desastres.
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