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Crítica/"Nadja"
Livro de Breton traz choques de Baudelaire ao século 20
Romance "Nadja" supera estética surrealista e vira protesto contra a realidade
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Uma das armadilhas que
"Nadja", de André Breton, reserva ao leitor é
a tentação de ver nessa narrativa a realização dos valores propostos pelo autor no "Manifesto Surrealista".
Escrita automática e ilogismo; abolição das fronteiras entre real e imaginário; magia primitiva, irracionalismo, vida
onírica. São estas as palavras de
ordem do escritor francês no
panfleto lançado em 1924. Quatro anos depois, ele publicava
"Nadja" e muitos críticos passaram a ver no livro a expressão
máxima da nova estética, que
renderia ainda livros como "Os
Vasos Comunicantes" e "O
Amor Louco".
Tal confusão foi fomentada
pelo próprio Breton. No começo do livro, no qual narra encontros com uma misteriosa
mulher pelas ruas da capital
francesa, ele afeta solene desprezo pela literatura "descritiva" e faz a apologia dos "imperativos antiliterários".
"Os dias da literatura psicológica com fabulação romanesca estão contados", escreve ele.
A indiferença aos procedimentos estilísticos lhe permitiria
introduzir-se "num mundo como que proibido, que é o das
aproximações repentinas, das
petrificantes coincidências,
dos reflexos que vencem qualquer outro impulso mental".
Somem-se a isso o registro
autobiográfico de um narrador
passeando por Paris (onde encontra companheiros de viagem como Paul Éluard, De Chirico, Picasso, Jean Paulhan) e a
tonitruante frase que encerra o
volume ("A beleza será CONVULSIVA, ou não será") para
termos em "Nadja" uma espécie de livro-manifesto.
Intenção e realização
Ocorre que, como é freqüente nas grandes obras, esse livro
deve sua permanência à defasagem entre intenção e realização
(em proveito desta). É provável
que Breton tenha concebido
"Nadja" como exemplo de escrita radicalmente atada à vida,
expressão pura da psique, com
seus lapsos e obsessões.
O vulto quase imaterial da
mulher com quem trava breves
e enigmáticos diálogos seria a
projeção fantasmática de seus
desejos e do "mais interdito de
todos os domínios": as camadas
do inconsciente, que descobrira com Freud.
Entretanto, está muito distante dos clichês que o surrealismo nos legou, com seus estados de espírito visionários, dos
quadros de Max Ernst ou dos
contos de um surrealista tardio
como Mandiargues. Breton reivindica uma filiação a Lautréamont e aos seres fantásticos
dos "Contos de Maldoror", mas
nada é menos "convulsivo" do
que o tom ensaístico, quase cerebral, com que vai descrevendo os mercados e as vitrines das
ruas parisienses.
Como observa Eliane Robert
Moraes no prefácio à edição,
Breton substituiu os inóspitos
rochedos e as criaturas monstruosas da tradição gótico-romântica pelo movimento e o
burburinho da multidão, pelas
passagens e vielas da metrópole moderna. Ali o "flâneur" percebe na "passante" Nadja um
lampejo de existência que escapa à coisificação.
A referência a Baudelaire não
é gratuita. Breton atualiza no
século das catástrofes o efeito
de choque da modernidade
percebido pelo poeta de "As
Flores do Mal".
Nadja surge exatamente no
momento em que o narrador
reflete sobre a alienação do trabalho. É uma aparição que vem
perturbar de modo "violentamente incidental" a monotonia
das "máquinas inexoráveis que
impõem o dia inteiro, com alguns segundos de intervalo, a
repetição do mesmo gesto".
Celebração do acaso e dos nexos ocultos entre existências
errantes, "Nadja" é um protesto contra a surrealista realidade que reduz os seres à condição de mercadoria.
NADJA
Autor: André Breton
Tradução: Ivo Barroso
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 45 (184 págs.)
Avaliação: ótimo
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