São Paulo, sábado, 29 de setembro de 2007

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Crítica/"Nadja"

Livro de Breton traz choques de Baudelaire ao século 20

Romance "Nadja" supera estética surrealista e vira protesto contra a realidade

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das armadilhas que "Nadja", de André Breton, reserva ao leitor é a tentação de ver nessa narrativa a realização dos valores propostos pelo autor no "Manifesto Surrealista".
Escrita automática e ilogismo; abolição das fronteiras entre real e imaginário; magia primitiva, irracionalismo, vida onírica. São estas as palavras de ordem do escritor francês no panfleto lançado em 1924. Quatro anos depois, ele publicava "Nadja" e muitos críticos passaram a ver no livro a expressão máxima da nova estética, que renderia ainda livros como "Os Vasos Comunicantes" e "O Amor Louco".
Tal confusão foi fomentada pelo próprio Breton. No começo do livro, no qual narra encontros com uma misteriosa mulher pelas ruas da capital francesa, ele afeta solene desprezo pela literatura "descritiva" e faz a apologia dos "imperativos antiliterários".
"Os dias da literatura psicológica com fabulação romanesca estão contados", escreve ele. A indiferença aos procedimentos estilísticos lhe permitiria introduzir-se "num mundo como que proibido, que é o das aproximações repentinas, das petrificantes coincidências, dos reflexos que vencem qualquer outro impulso mental".
Somem-se a isso o registro autobiográfico de um narrador passeando por Paris (onde encontra companheiros de viagem como Paul Éluard, De Chirico, Picasso, Jean Paulhan) e a tonitruante frase que encerra o volume ("A beleza será CONVULSIVA, ou não será") para termos em "Nadja" uma espécie de livro-manifesto.

Intenção e realização
Ocorre que, como é freqüente nas grandes obras, esse livro deve sua permanência à defasagem entre intenção e realização (em proveito desta). É provável que Breton tenha concebido "Nadja" como exemplo de escrita radicalmente atada à vida, expressão pura da psique, com seus lapsos e obsessões.
O vulto quase imaterial da mulher com quem trava breves e enigmáticos diálogos seria a projeção fantasmática de seus desejos e do "mais interdito de todos os domínios": as camadas do inconsciente, que descobrira com Freud.
Entretanto, está muito distante dos clichês que o surrealismo nos legou, com seus estados de espírito visionários, dos quadros de Max Ernst ou dos contos de um surrealista tardio como Mandiargues. Breton reivindica uma filiação a Lautréamont e aos seres fantásticos dos "Contos de Maldoror", mas nada é menos "convulsivo" do que o tom ensaístico, quase cerebral, com que vai descrevendo os mercados e as vitrines das ruas parisienses.
Como observa Eliane Robert Moraes no prefácio à edição, Breton substituiu os inóspitos rochedos e as criaturas monstruosas da tradição gótico-romântica pelo movimento e o burburinho da multidão, pelas passagens e vielas da metrópole moderna. Ali o "flâneur" percebe na "passante" Nadja um lampejo de existência que escapa à coisificação.
A referência a Baudelaire não é gratuita. Breton atualiza no século das catástrofes o efeito de choque da modernidade percebido pelo poeta de "As Flores do Mal".
Nadja surge exatamente no momento em que o narrador reflete sobre a alienação do trabalho. É uma aparição que vem perturbar de modo "violentamente incidental" a monotonia das "máquinas inexoráveis que impõem o dia inteiro, com alguns segundos de intervalo, a repetição do mesmo gesto".
Celebração do acaso e dos nexos ocultos entre existências errantes, "Nadja" é um protesto contra a surrealista realidade que reduz os seres à condição de mercadoria.


NADJA
Autor: André Breton
Tradução: Ivo Barroso
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 45 (184 págs.)
Avaliação: ótimo



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