São Paulo, segunda, 29 de setembro de 1997.



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Queima de maconha e bode federal em PE

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha Toda vez que o governo queima uma grande quantidade de fumo, lembro-me da Idade Média e respiro aliviado: pelo menos já não queimam mais gente. Mas o ritual, por mais suave que pareça aos que têm uma visão histórica, ainda não pode ser classificado como uma atitude inteligente.
Quando Collor queimou toneladas de cocaína também houve uma grande explosão e quase que ele foi tragado por uma nuvem de pó. Com ventos favoráveis, ele ia reaparecer 72 horas depois em Miami, com os olhos esbugalhados, perguntando: "Querida, o que vamos fazer essa noite?"
Agora foi a vez do ministro Raul Jungmann. Houve uma nova explosão, e vimos, nas capas dos jornais, o ministro encolhido e assustado, como se estivesse sendo castigado pelos deuses da mata. "Ah, então você gosta de uma foto-oportunidade?", parecem dizer. "Então, segura essa."
Um ministro encolhido diante de uma nuvem de fumaça. Incapaz de imaginar que aquilo era uma planta que atravessou séculos e já se acostumou a desaparecer no fogo. Queimada assim, em grande escala, é capaz de sutis artimanhas, como a de usar um pobre ministro assustado para exibir seu bom humor nas primeiras páginas de todos os jornais.
Era previsível que o ministro, sem conhecer a história da maconha, encontrando uma grande quantidade da planta, fosse ironizado por ela. "Ah, você e o Fernando Henrique são lúcidos? Não acho." E olhem que ela não estaria questionando o fundamento moral do governo: acabar com a droga, salvar a família, os bons costumes etc. Ela os respeita democraticamente.
O que estava em jogo é o seguinte: se alguém quiser acabar com a droga, que faça ao menos uma tentativa menos ineficaz. Queimar toneladas de fumo para convencer a juventude a parar de queimar fumo talvez seja a idéia de comunicadores sofisticados demais para entender seu alcance.
O mundo está ardendo em queimadas. Na Malásia, as pessoas andam com máscaras, algumas escolas fecharam. Em Manaus, na semana passada, perdi uma noite de sono porque não conseguia respirar em meio a queimadas que castigaram nossos olhos e pulmões durante todo o dia.
A história está ardendo em queimadas: livros, barracos de posseiros, judeus, homossexuais e ciganos, sodomitas e hereges.
O presidente se acha tão dentro do mundo e nem sequer se dá conta do debate nos Estados Unidos em torno do referendum da Califórnia, onde a maconha é usada como importante recurso medicinal.
Milhares e milhares de cancerosos e portadores de HIV poderiam usar essa maconha, distribuída com controle médico. Isso já está sendo feito nos Estados Unidos, foi capa da revista do "New York Times". E aquele papo todo de que agora seremos modernos? Suponhamos que nenhum desses argumentos se sustentasse.
O próprio fogo faria o trabalho. Quantas vezes se queimaram livros achando que acabariam ali algumas idéias perigosas. O fogo dá essa ilusão de que você acaba com o que está queimando, quase sempre algo que enfeitiça as pessoas, como, por exemplo, a busca da autenticidade, um senso crítico diante do poder do Estado.
Mas o fogo revela também o nosso medo de uma forma mais contundente: queimamos porque tememos, não conseguimos conviver com um perigo que ainda não morreu dentro de nós. Provavelmente, no fogo da Inquisição não se queria queimar apenas os infiéis mas a própria infidelidade, que continuaria como uma possibilidade dentro de cada um.
Para não dizer que fiz uma crítica pouco construtiva, convido o ministro a visitar minha página na Internet e ler a história (tecle Legalize). É uma modesta síntese em português para ser uma base de debate. Mas há também inúmeros endereços, que tomarão dias e dias de pesquisa.
Quanto ao presidente, sei que ele deve detestar essas campanhas de telegrama. Minha tentação é a de sugerir uma mensagem curta: chega de queimadas. Não precisa explicar, ele vai ver as pessoas de máscara na Malásia, um dia vai tentar aterrissar em Porto Velho.
Não misturo as coisas assim tão aleatoriamente. A mensagem é dupla porque o presidente tem com a causa ambiental a mesma relação que Clinton teve na juventude com a maconha: fumou e não tragou.
Já o ministro Jungmann, esse apenas exagerou na dose. Queimar toneladas de maconha, em Pernambuco, que ele tão bem conhece, parece um pouco essas idílicas imagens do menino trazendo o mar para dentro de seu balde. Com a onda batendo forte.



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