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Queima de maconha e bode federal em PE
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Toda vez que o governo queima uma grande quantidade de
fumo, lembro-me da Idade
Média e respiro aliviado: pelo
menos já não queimam mais
gente. Mas o ritual, por mais
suave que pareça aos que têm
uma visão histórica, ainda não
pode ser classificado como
uma atitude inteligente.
Quando Collor queimou toneladas de cocaína também
houve uma grande explosão e
quase que ele foi tragado por
uma nuvem de pó. Com ventos
favoráveis, ele ia reaparecer 72
horas depois em Miami, com
os olhos esbugalhados, perguntando: "Querida, o que vamos
fazer essa noite?"
Agora foi a vez do ministro
Raul Jungmann. Houve uma
nova explosão, e vimos, nas capas dos jornais, o ministro encolhido e assustado, como se
estivesse sendo castigado pelos
deuses da mata. "Ah, então
você gosta de uma foto-oportunidade?", parecem dizer.
"Então, segura essa."
Um ministro encolhido diante de uma nuvem de fumaça.
Incapaz de imaginar que aquilo era uma planta que atravessou séculos e já se acostumou a
desaparecer no fogo. Queimada assim, em grande escala, é
capaz de sutis artimanhas, como a de usar um pobre ministro assustado para exibir seu
bom humor nas primeiras páginas de todos os jornais.
Era previsível que o ministro,
sem conhecer a história da maconha, encontrando uma
grande quantidade da planta,
fosse ironizado por ela. "Ah,
você e o Fernando Henrique
são lúcidos? Não acho." E
olhem que ela não estaria
questionando o fundamento
moral do governo: acabar com
a droga, salvar a família, os
bons costumes etc. Ela os respeita democraticamente.
O que estava em jogo é o seguinte: se alguém quiser acabar com a droga, que faça ao
menos uma tentativa menos
ineficaz. Queimar toneladas
de fumo para convencer a juventude a parar de queimar
fumo talvez seja a idéia de comunicadores sofisticados demais para entender seu alcance.
O mundo está ardendo em
queimadas. Na Malásia, as
pessoas andam com máscaras,
algumas escolas fecharam. Em
Manaus, na semana passada,
perdi uma noite de sono porque não conseguia respirar em
meio a queimadas que castigaram nossos olhos e pulmões
durante todo o dia.
A história está ardendo em
queimadas: livros, barracos de
posseiros, judeus, homossexuais e ciganos, sodomitas e
hereges.
O presidente se acha tão dentro do mundo e nem sequer se
dá conta do debate nos Estados Unidos em torno do referendum da Califórnia, onde a
maconha é usada como importante recurso medicinal.
Milhares e milhares de cancerosos e portadores de HIV
poderiam usar essa maconha,
distribuída com controle médico. Isso já está sendo feito
nos Estados Unidos, foi capa
da revista do "New York Times". E aquele papo todo de
que agora seremos modernos?
Suponhamos que nenhum desses argumentos se sustentasse.
O próprio fogo faria o trabalho. Quantas vezes se queimaram livros achando que acabariam ali algumas idéias perigosas. O fogo dá essa ilusão de
que você acaba com o que está
queimando, quase sempre algo
que enfeitiça as pessoas, como,
por exemplo, a busca da autenticidade, um senso crítico
diante do poder do Estado.
Mas o fogo revela também o
nosso medo de uma forma
mais contundente: queimamos
porque tememos, não conseguimos conviver com um perigo que ainda não morreu dentro de nós. Provavelmente, no
fogo da Inquisição não se queria queimar apenas os infiéis
mas a própria infidelidade,
que continuaria como uma
possibilidade dentro de cada
um.
Para não dizer que fiz uma
crítica pouco construtiva, convido o ministro a visitar minha
página na Internet e ler a história (tecle Legalize). É uma
modesta síntese em português
para ser uma base de debate.
Mas há também inúmeros endereços, que tomarão dias e
dias de pesquisa.
Quanto ao presidente, sei que
ele deve detestar essas campanhas de telegrama. Minha tentação é a de sugerir uma mensagem curta: chega de queimadas. Não precisa explicar, ele
vai ver as pessoas de máscara
na Malásia, um dia vai tentar
aterrissar em Porto Velho.
Não misturo as coisas assim
tão aleatoriamente. A mensagem é dupla porque o presidente tem com a causa ambiental a mesma relação que
Clinton teve na juventude com
a maconha: fumou e não tragou.
Já o ministro Jungmann, esse
apenas exagerou na dose.
Queimar toneladas de maconha, em Pernambuco, que ele
tão bem conhece, parece um
pouco essas idílicas imagens
do menino trazendo o mar para dentro de seu balde. Com a
onda batendo forte.
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