São Paulo, Sexta-feira, 29 de Outubro de 1999
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Nova "Clara Crocodilo" é explícita

da Reportagem Local

Marco da esquisitice na música (popular?) brasileira, "Clara Crocodilo" está de volta para remarcar a esquisitice da esquisitice. Parece caso único, e o autor, Arrigo Barnabé, poderia sem custo ser acusado de querer retocar o que já pertencia à história, adulterá-la -não são poucos os que tentam fazê-lo, por métodos mais sutis.
A nova "Clara Crocodilo" é explícita. Aperfeiçoa sua matriz, banhando-se de apuro técnico artístico, do auxílio de instrumentistas, arranjadores e vocalistas de primeira, da rigorosa avacalhação a que Arrigo submete seus vocais bêbados de não-cantor.
Mas tenta retificar o que não era retificável? Difícil dizer, mas parece que não. A nova "Clara" é, antes de qualquer coisa, testemunho despido de um caso clínico.
Em seu primeiro trabalho, Arrigo produziu um dos instantes mais peculiares da história musical nacional, mas então se viu encurralado pela fronteira em que se movia -erudito versus popular-, pelo excesso de peculiaridade do que inventou, talvez pela inibição que a grandiosidade da criatura que inventara provocou nele próprio, dr. Frankenstein.
Daí surge o obcecado. Sua carreira vai sendo marcada por tentativas de fuga que não o satisfazem e, mais frequentemente, pela fixação no monstro-crocodilo que é, afinal, o próprio autor.
O ente Clara Crocodilo demarcou, no pop, a falência das narrativas -é um monumento de descontinuidade, um espelho do estilhaçamento urbano (e nunca ode à urbanidade). Garatuja atocaiada dentro da mente do criador, está à espreita para destruí-lo.
Por isso ele a segue, a remodela, brinca com ela, cutuca, provoca. Ela pode mordê-lo a qualquer instante, acabar com a história de uma vez por todas. Voltar a ela sempre é, para ele, impedi-la de devorá-lo. Briga sanguinária.
Daí vem a pequena mácula. A narração que antecede o desfecho do disco foi suprimida em favor de outra, menos cortante. Já não se fala na data-símbolo de 31 de dezembro de 1999, em Clara descrita como fruto da imaginação do ouvinte, no monstro à espreita na próxima esquina.
Adotando o presente, a data comum em que ocorreu a gravação, parece querer negar o caráter datado de sua obra -no original, resplandecia a noção do disco obscuro perdido num sebo (é afinal o que a "Clara" de 80 é hoje) libertando o monstro dormente.
Tal impressão se dissolve em outros cantos, como na comparação entre as duas capas. Pop, meio HQ, o original sangrava, era verde e vermelho, denotava vida de esgoto. Recriado, se desumanizou, ressecou. A bocarra do crocodilo se faz de dois muros vincados por cacos cortantes, o olho do bicho também é de vidro. É a metáfora da música religiosa de cartolina que a TV vende em 1999.
Configura-se nisso, de novo, a metáfora do artista aprisionado por sua obra. Mas o momento, para Arrigo Barnabé, é especial. Ele soltou o monstro da jaula. Está sondando seus infernos muito mais do que querendo se corrigir. São os vidros agudos do muro da carceragem. Ou o pulo para um novo mundo, lá fora. (PAS)


Avaliação:    


Disco: Clara Crocodilo Artista: Arrigo Barnabé Lançamento: Thanx God Records Quanto: R$ 20, em média

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